'1984': George Orwell Critica 'a Esquerda'? 08/06/2024 Ilustrada

‘1984’: George Orwell critica ‘a esquerda’? – 08/06/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Lançado há exatos 75 anos, o livro “1984”, do inglês George Orwell, é um romance distópico do qual enredo carrega uma contundente sátira ao autoritarismo e à manipulação da verdade.

Nas tensões políticas contemporâneas, com ânimos acirrados e envolvente polarizado, a obra tem sido utilizada por militantes de direita para criticar governos alinhados à esquerda.

Não é de hoje que esse uso político de “1984” vem sendo feito, aliás. Muitos aludiam ao livro para críticas à imposição de medidas sanitárias durante a pandemia, uma vez que lockdowns, restrições de deslocamento e uso obrigatório de máscaras.

No livro de Orwell, publicado em 8 de junho de 1949, o Ministério da Verdade é um dos quatro que compõem o governo do figurado Estado totalitário de Oceânia.

A pasta é a responsável pela propaganda e pela falsificação de documentos históricos, garantindo a narrativa pró-governo. Sua função principal é modificar registros para que estes espelhem a versão solene da história promovida pelo Partido —garantindo que a instituição sempre esteja certa e a sua narrativa seja a única verdade.

No contexto do livro, levante instrumento de manipulação serve para o controle do pensamento dos cidadãos e a manutenção do poder.

Quando a Companhia das Letras reeditou, quatro anos detrás, o livro “A Quinta dos Animais” —em traduções mais antigas, publicado no país uma vez que “A Revolução dos Bichos”— , também de Orwell e também com um peso político importante, o professor de literatura da Universidade de São Paulo (USP) Marcelo Pen ressaltou, no posfácio, que a obra orwelliana era vítima do que ele chamou de “apropriação retrógrada”, por meio de leituras que tendem a atribuir a suas obras o viés de propaganda anticomunista.

Mas pessoalmente, o plumitivo inglês se definia uma vez que “socialista democrático”. Orwell, no entanto, fazia críticas duras ao stalinismo, o socialismo implantado na União Soviética de viés dominador. O livro “A Revolução dos Bichos” é muitas vezes visto uma vez que uma sátira ao regime soviético.

“Talvez seja complicado falar de mensagem [em ‘1984’], sobretudo com relação à forma do romance moderno que, ao contrário de formas narrativas mais antigas, não contém, propriamente, uma mensagem ou prelecção de vida”, argumenta Pen, à BBC News Brasil.

“No entanto, podemos proferir um pouco acerca da intenção do responsável, que chegou a proferir, publicamente, que sua obra não seria um ataque ao socialismo, por exemplo, mas sim um alerta sobre o transe do totalitarismo em qualquer secção, tanto com relação ao fascismo e ao tal stalinismo soviético quanto ao que ele chamava de ‘americanismo’ das terras do Tio Sam.”

Professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto lembra à reportagem que Orwell “era um jovem de esquerda” quando participou uma vez que voluntário da Guerra Social Espanhola “e, por mero possibilidade, foi parar num grupo libertário”.

“Vendo que os comunistas, na idade controlados por Stálin, tratavam os anarquistas uma vez que se eles, e não os franquistas, fossem o inimigo, Orwell voltou da Espanha uma vez que um antiestalinista ferrenho, e a União Soviética passou a ser vista por ele uma vez que a encarnação do totalitarismo”, contextualiza Britto.

“‘A Revolução dos Bichos’ é o livro em que ele mostra de modo mais evidente sua posição em relação ao que lhe parecia a transformação do comunismo, sob Stálin, em totalitarismo”, compara. “Em ‘1984’ ele imagina um mundo dividido entre um número reduzido de Estados totalitários que parecem fundir o que há de pior no fascismo e no estalinismo.”

Para o professor Britto, “os dois livros são, portanto, essencialmente manifesto antitotalitários.”

Com a experiência de também já ter trabalhado com obras de Orwell, o plumitivo e tradutor Antônio Xerxenesky ressalta à BBC News Brasil que, “pela biografia” do plumitivo inglês, “podemos proferir que ‘1984’ representa uma suspicácia a qualquer forma de totalitarismo”.

“Ecos disso se encontram em ‘1984’: a figura do Grande Irmão pode muito muito ser associada à de Stalin, e todo o regime retratado tem características estéticas do comunismo linha-dura. Isso não quer proferir que sua sátira se restrinja ao comunismo”, diz Xerxenesky, ressaltando que “muitas leituras são capazes de associar outros traços do regime ao nazismo de Hitler.”

Responsável da versão em graphic novel de ‘1984’, o artista e ilustrador Fido Nesti comenta à reportagem que, a seu ver, “Orwell esperava alertar sobre de que maneira um país, ou o mundo, poderia degringolar nas mãos de um governo extremamente dominador.”

“Criou um universo, que passamos a invocar de orwelliano, onde a sociedade é estrangulada a ponto de ser incapaz de ter um pensamento ou existência autônoma”, salienta Nesti.

Outro tradutor de Orwell para o português, o jornalista e plumitivo Bruno Cobalchini Mattos diz à BBC News Brasil que o livro “de forma bastante clara, é sobre o transe e o risco do totalitarismo, de uma vez que o regime totalitário acaba permeando o pensamento das pessoas muitas vezes sem que elas percebam”.

Depravação da linguagem

“Precisamos sempre tomar muito zelo, porém, para não transformar Orwell em um caso, uma vez que base para uma discussão universal, digamos, de denúncia uma vez que o totalitarismo”, pontua Pen

O acadêmico avalia que “esse romance fala diretamente, de um modo assombroso e inquietante, à nossa idade”. “E não exatamente por sua intenção antitotalitária, pois diria que várias outras obras, antes e depois, cumpriram esse papel, mas por atrelar o totalitarismo à devassidão da linguagem”, explica.

“Esse é um ponto crucial do enredo. O protagonista trabalha no Ministério da Verdade, cuja tarefa é adulterar a verdade por meio de narrativas inventadas ou falsificadas, que interessem ao regime do Grande Irmão”, resume o professor. “Mas há um projecto mais insidioso: a substituição da língua manante pela novafala, uma versão empobrecida, padronizada, ideologicamente manipulada do linguagem.”

Porquê muito diz um dos personagens do livro, se trata da “ruína das palavras”.

“Com a introdução definitiva da novafala não seria mais necessário adulterar os fatos: a própria linguagem se ocuparia do embotamento da consciência, impedindo o pensamento crítico e a ação reformadora”, frisa Pen.

O professor acredita que, com isso, “ele antecipou o risco não unicamente do que hoje passou a ser chamado de ‘fatos alternativos’ ou ‘fake news’, mas ainda da pobreza da linguagem que prolifera nas novas mídias, em visível proselitismo políticos e religioso, e nas redes sociais, que tem consequências nefastas para o pensamento, a imaginação e a democracia.”

“A meu ver, Orwell previu de modo certeiro um paisagem do mundo contemporâneo: hoje em dia tudo que fazemos ou dizemos é registrado de modo implacável”, acrescenta Britto. “Só que a imensidão de dados gerada por essa vigilância uniforme não está nas mãos dos Estados, porém é controlada pelas big techs.”

Paralelismos e fake news

O tradutor Mattos atenta para um traje, para ele “mais interessante mas menos comentado” presente em1984′ e no mundo de hoje: mais do que a vigilância uniforme, “a disposição das pessoas em viverem assim”. “As câmeras hoje nem precisam estar escondidas, porque a gente está viciado a viver rodeado por câmeras e a se expor”, diz.

Sem tombar em anacronismos, é verosímil traçar muitos paralelos entre o mundo distópico imaginado por Orwell e as sociedades contemporâneas.

“Hoje é impossível a gente não olhar para essa obra e não fazer uma conformidade a partir do nosso mundo. Não temos nem mais ficção que de conta de nossos modelos, dos meios de vigilância que são muito maiores do que os apresentados pelo livro”, diz à BBC News Brasil o filósofo e psicólogo Marcos da Silva e Silva, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e da Universidade Federalista do ABC.

“Observando as alegorias tecnológicas, […] o responsável pretendeu-se uma espécie de vaticinador, desenhando o que viriam a ser uma verdade na viradela para o século 21”, aponta à BBC News Brasil o historiador Rafael Maranhão, professor no Escola Presbiteriano Mackenzie Brasília.

Para ele, considerando “o controle do fluxo de informações proposto por alguns governos atuais, há uma risca tênue entre vigilância para a contenção de crimes e o controle totalidade daquilo que o cidadão faz em seu cotidiano”.

“A evolução na tecnologia da informação ampliou a possibilidade do controle das percepções, promovendo uma ensino de volume”, prossegue. “Em nenhum outro momento da humanidade foi tão simples definir as preferências da populações. O uso dos algoritmos nos diversos aplicativos e as IAs [inteligências artificiais] tomando os espaços refletem um pouco da proposta e sátira realizadas pela obra de Orwell.”

Maranhão ressalta que “o totalitarismo, em sua origem, se alimenta do controle nos diversos setores e da geração de realidades paralelas que resumem suas pretensões políticas, econômicas, sociais e culturais”.

O ilustrador Nesti conta que a repercussão de sua graphic novel é praticamente um atestado de uma vez que há paralelos entre o universo orwelliano e o mundo contemporâneo. “Porquê a adaptação em quadrinhos foi lançada em mais de 20 países, é curioso receber mensagens de leitores dos mais diversos lugares e com todo o tipo de governo, declarando que a sua verdade é muito parecida com a do livro” comenta.

Mas, ao contrário do que dizem muitas das postagens nas redes sociais brasileiras sobre o viés do livro, as críticas não se resumem ao espectro político à esquerda.

“O aumento de tendências autoritárias da extrema direita, o desprezo pela democracia, o luminar à personalidade de governantes e o negacionismo são unicamente alguns dos paralelos. O meu celular, que volta e meia parece escutar meus pensamentos, me faz lembrar das vigilantes teletelas da Oceânia. As fake news, que estão aí para manipular a direção que uma pessoa deverá votar, me remetem ao trabalho de Winston Smith no Ministério da Verdade, alterando o pretérito para controlar o presente e o horizonte”, exemplifica ele.

“O traje de que ‘1984’ foi um grande sucesso na idade e nunca saiu da lista de best-sellers é prova de que cada idade encontra vitalidade no livro”, sintetiza o tradutor Xerxenesky.

“A prenúncio do totalitarismo muda de rosto, mas segue presente em todas as épocas, o que com certeza inclui a nossa, com a ressurgência de partidos de extrema-direita globalmente. A reescrita da história, a diferença de fotos, a procura pela construção de uma história opção aos fatos, por sua vez, encontra muitos paralelos no mundo contemporâneo regido por fake news e pela manipulação do dedo.”

‘Cooptado por regimes despóticos e pela indústria cultural’

O uso de clássicos literários para tutorar posições políticas não é um pouco novo.

Há décadas, por exemplo, a direita italiana usa ‘O Senhor dos Anéis’, de J.R.R. Tolkien uma vez que uma espécie de “bíblia” para fundamentar o oração de “nós contra eles” e a pretensa luta contra “um sistema globalista”.

Em vida, Tolkien não era de direita. Era conservador, mas costumava se posicionar contra totalitarismos e autoritarismos.

“Desde que mundo é mundo, as obras de arte canônicas são lidas de modo a proporcionar governos e movimentos políticos. A Igreja Católica transformou Aristóteles num cristão avant la lettre, e se convenceu de que Virgílio previu o promanação de Jesus na quarta ‘Bucólica’. A coisa vem de longe”, comenta Britto.

“A transformação de Orwell em arauto da direita foi favorecida pelo traje de que ele se tornou anticomunista, leia-se antiestalinista, e a própria CIA [o serviço de inteligência dos Estados Unidos] incentivou a divulgação de ‘A Revolução dos Bichos’ uma vez que propaganda ideológica pró ‘mundo livre’. Mas, apesar do Fla-Flu ferrenho instaurado pela Guerra Fria, Orwell, que publicou esses dois livros no final da vida, justamente quando tinha início a Guerra Fria, sempre foi um libertário de esquerda”, completa o professor.

Pen diz que usar obras literárias uma vez que panfletos é um pouco que “simplifica de subitâneo a complicação da discussão”. “É um pouco o princípio da novafala. Você alija a linguagem do dinamismo humano e trabalho com significantes ocos, desprovidos de vida, capazes de ser manipulados para restringir o pensamento”, explica.

Ele lembra que as obras de Orwell “integraram o rol das leituras difundidas no Brasil para sustentar o programa ideológico da ditadura militar”.

Mas ele lembra que é verosímil “que esse paisagem polêmico” tenha contribuído para o sucesso das obras do inglês.

“É um dos paradoxos da recepção de Orwell. Trata-se de um responsável que defendia a liberdade de pensamento e a valia da luta contra o totalitarismo e que foi cooptado por regimes despóticos e pela indústria cultural, pensemos no Big Brother, para veicular justamente o oposto: a pobreza da linguagem, o embrutecimento da imaginação criadora, o autoritarismo, a vigilância”, acrescenta. “E, em secção por isso também, mantém-se até hoje uma vez que fenômeno editorial.”

Xerxenesky lembra que “levante é um risco que qualquer obra de arte corre”. “Nunca esquecerei que os principais defensores da teoria de que a Terreno é plana amam o livro de Orwell”, afirma. “A parábola construída pelo responsável pode ser moldada para encaixar muitas leituras, até mesmo as mais delirantes. Evidente que isso não é ideal, mas nenhum responsável é capaz de controlar o sentido da sua obra.”

“Quando ela chega ao mundo, os leitores são seus donos. E1984′, por tratar de temas de paranoia contra o governo, inevitavelmente será mais usado por teóricos da conspiração do que outros títulos”, diz ele.

Folha

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