A Corrida E O Mindfulness 19/06/2024 No Corre

A corrida e o mindfulness – 19/06/2024 – No Corre

Esporte

Passar algumas horas –minutos, vai– do dia sem olhar emails, responder o zap ou surfar no Instagram é uma veras distante para muita gente. A atividade física tem também o dom de facultar o detox do dedo tão desejado.

Supõe-se, enfim, que ninguém interrompa uma sessão de pilates, de ioga, de treinamento funcional, a escalada, a natação ou mesmo um treino de corrida para responder emails.

É verdade que os gadgets cada vez mais facilitam isso, e a chegada de um similar viável do Google Lens, que um dia certamente vem, irá permitir essa conexão totalidade, sem folga, a dispensar até o uso das mãos.

Misericórdia.

Creia: esse exílio do dedo, ainda que episódico, é muito valioso, e ele não deveria ser esperdiçado. É de se imaginar que ninguém vai perder o ocupação ou arruinar o himeneu por conta disso. Não se trata de um retiro vipassana, aquela mergulho de dez dias em sessões contínuas de reflexão em que não se pode falar –tampouco ler livros.

Dizem que correndo é provável atingir uma atenção plena, similar ao que se procura na reflexão ou no mindfulness em relação às nossas percepções corporais. O tal do fluxo.

E que também é provável ter insights fantásticos, ideias espetaculares, estratégias matadoras a serem implementadas no trabalho ou onde for já no dia seguinte.

Má notícia: em dezena e meia ou mais de corridas sistemáticas, creio não ter chegado nem perto disso. Sim, o problema pode não estar na corrida, mas no galeria.

Rendimento que tentei. Usei disciplina, uma vez que a que se empenha na ioga, para tentar fixar durante uma corrida tudo o que acontecia no meu entorno –e dentro da minha cabeça.

Chamei esse tipo de corrida —lembro de um cascalhinho de menos de 5 km em torno da raia olímpica da USP— de corrida Abramovic, em homenagem à performer sérvia Marina Abramovic, que já observou, relacionou e filmou seus movimentos diários, uma vez que escovar os dentes, e os apresentou a seu público (sim, a corrida também poderia homenagear Andy Warhol).

A teoria era mesmo esta: tentar fixar na memória tudo o que ocorresse durante o treino, na sequência exata desses acontecimentos. Pensamentos incluídos.

O resultado foi descrito anteriormente no site Jornalistas que Correm, mas reproduzo extrato cá também, aquém.

Sabe-se que a prática contínua de ioga tem o dom de provocar alterações neurológicas benéficas, mas não sei se o mesmo poderá ser dito da corrida Abramovic.

Dá para declarar, isso sim, que ela ajuda a reter na memória observações mais ou menos acuradas, valiosas para quem escreve autoficção e precisa descrever com maior verossimilhança algumas passagens de seu “eu lírico”.

Eis o que se passou na minha corrida Abramovic:

– Duas entidades discutem na minha cabeça o momento em que a jornada vira corrida. Logo meu pé recta (terá sido o esquerdo?) acelera o passo, dando início à coisa.

– Já na grama, reduzo a velocidade para driblar os longos barcos que fecham a passagem, esgueirando-me entre eles e o barranco.

– Viro muro de 45 graus e meus pés encontram a grama mais subida e úmida.

– Tomo um singletrack que logo dá numa filete de asfalto.

– Meu pé esquerdo topa com o que parece ser uma pequena pedra e puxo a perna em ato revérbero.

– Olho para o lado recta, vejo a placidez da chuva da raia. Nenhum paquete a velejar.

– Penso nas capivaras.

– Vejo três capivaras.

– Uma delas, a menor, se vira de costas e inicia uma fuga, sustada em segundos.

– Início a ouvir o experimento de percussão dos alunos de engenharia.

– Engenharia? Por que engenharia?

– Passo pelos batuqueiros. São dois grupos, o primeiro, à minha esquerda, maior, com surdos e caixas de guerra.

– Viro 90 graus à direita, acompanhando o final da raia; faço um conta mental da extensão desse trecho, e não chego a epílogo acurada. Talvez 70 metros.

– Viro 90 graus outra vez à direita. Agora volto pelo galeria entre a raia e a marginal Pinheiros. Vejo ao longe o relógio do dedo de um banco, mas não o horário, o que, de qualquer forma, seria uma informação ociosa.

– Noto a irregularidade no terreno e os pequenos excrementos, suponho que de capivaras.

– Reflito sobre uma vez que as capivaras chegaram até lá, oferecido que supostamente as águas da raia não se comunicam com as do rio Pinheiros.

– Presto atenção à minha esquerda, olhando as grandes tubulações e as galerias subterrâneas. Vejo uma tubulação, mas sigo sem saber se vem do rio.

– Alcanço dois remadores alinhados comigo na chuva num caiaque e os ultrapasso. Calculo mentalmente meu pace aquém dos 5 min/km.

– Chego próximo à placa que sinaliza aos motoristas da marginal que eles estão a 1,2 km da ponte da USP. É mais ou menos a intervalo que me falta até virar outros 90 graus à direita.

– Alguém que parece um vigia cruza comigo lentamente, de bicicleta. Penso que sem bicicleta ele estaria em maus lençóis. Que não seria capaz de decorrer uma vez que eu. Penso no que ele faria se começasse a desabar uma chuva torrencial, com raios e trovões. E que, caso precisasse de abrigo, ele teria de andejar exatamente 2 km.

– Surge a placa que indica faltar 700 metros para a ponte da USP.

– Calculo mentalmente de novo minha velocidade. Penso que não aguentaria essa tocada por muito tempo, talvez não chegasse a 10 km.

– Lembro um teste espirométrico que havia abortado. Penso se interromperia de novo a coisa no meio do esforço, com pânico de sentir falta de ar. Intuo que talvez queira repeti-lo.

– Aparece a placa de 300 metros. Olho adiante para calcular se são 300 metros que me faltam até virar 90 graus novamente à direita.

– Viro 90 graus à direita sem ter muita certeza se faltavam 300 metros ou 200 e alguma coisa.

– Olho para o pavimento.

– Viro 90 graus à direita e proveito a última seção do trajectória. Olho rapidamente em direção à avenida da Universidade, à esquerda do alambrado. Não vejo nenhum carruagem passar.

– Um galeria, que suponho ser um colega de um curso de remo da USP, passa por mim na direção contrária.

– Noto que finalmente cai a noite quando troco o asfalto pelo singletrack.

– Outra corredora vem em minha direção e ofereço o singletrack a ela, o que me obriga a reprofundar o tênis numa poça de lodo.

– Passo pelo primeiro barco-escola, privativo dos alunos do que acho ser o Clube Paulistano. Vejo que os quatro lugares do paquete estão ocupados.

– Desacelero. Penso na diferença do esforço aeróbico entre o trote e a jornada. Fico admirado em notar uma vez que passos no mesmo ritmo podem ter exigência aeróbica tão distinta.

– Termino no bebedouro. Uma família de cães se aproxima.

Folha

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *