Europa, 2024. Em Berlim, a gerente da polícia sítio adverte: judeus e gays devem ter muito desvelo quando caminham por bairros com maioria mouro. Pode possuir problemas.
Li a notícia duas vezes, só para confirmar que não estava surtando. As palavras da senhora Barbara Slowik, para além de não fazerem uma eminência prudente entre criminosos e comunidades árabes inteiras (primeiro erro), acaba por punir as vítimas, não os agressores (segundo erro).
Mal comparado, é uma vez que admoestar as mulheres a não usarem minissaia para não serem violadas. Um Estado de Recta garante segurança para todos, sem excluir do espaço público minorias indesejadas. Melhor ainda: indesejadas por outras minorias.
Que eu saiba, judeus com estrelas amarelas ou gays com triângulos cor-de-rosa ficaram lá detrás, uma vez que aberrações da história. A cidade pode ser a mesma. O século é que não. Até porque a estratégia da polícia de Berlim pode não se limitar a judeus e gays. Sabendo que os fanáticos têm uma lista generosa de ódios e preconceitos, quem se seguirá no invitação de exclusão? Mulheres sem véu? Cristãos praticantes? Bebedores de cerveja e comedores das famosas salsichas alemãs? O firmamento é o limite quando o Estado não impõe limites.
2. Suicídio testemunhado? Existem duas formas de mourejar com o tema. A primeira, rápida e indolor, é adotar uma posição radical qualquer —Deus proíbe; a liberdade individual permite— e fechar o debate antes de ele principiar.
Tolero ambas as posições. Mas as coisas, no mundo real, são ligeiramente mais complexas.
Início com Deus. A teoria de que Deus proíbe é válida para um piedoso. Mas que expor a um não piedoso que agoniza numa leito de hospital, sem tratamento verosímil, mendigando por um termo rápido?
O mesmo vale para a liberdade. Eu quero, eu mando? Parece fácil. Não é, não. Até que ponto eu quero? E até que ponto eu mando?
A revista The Economist, atenta à votação histórica que terá lugar no parlamento britânico na próxima sexta-feira, contribui para o debate. Existe um projeto de lei, apresentado pelos trabalhistas, que pretende legalizar o suicídio testemunhado para doentes em termo de vida. A maioria da população apoia. Mas o resultado da votação é incerto. Por quê?
Segundo a Economist, a discussão que terá lugar será um confronto entre dois conceitos de liberdade, tal uma vez que Isaiah Berlin os apresentou no famoso experiência de 1958. Para os defensores do suicídio testemunhado, a questão é clara: a minha liberdade (negativa) consiste em atuar sem a coerção premeditado de terceiros.
Para os opositores do suicídio testemunhado, a questão é menos clara: uma vez que prometer que essa coerção não existe para condicionar a liberdade (positiva) de seguir a minha vontade genuína?
É uma boa pergunta que remete para a natureza das nossas escolhas. E, cá, talvez seja Hegel, e não tanto Isaiah Berlin, o melhor guia filosófico. A liberdade, defendia ele, não existe no vazio; ela é determinada pelas circunstâncias em que nos encontramos.
Um doente com quantia, pedestal familiar e entrada aos melhores tratamentos paliativos terá uma amplitude de escolha que não existe para um doente sem quantia, sem família e sem entrada a esses tratamentos. Para o primeiro, o suicídio testemunhado pode ser uma opção entre várias. Para o segundo, será quase uma fatalidade, sobretudo se a prática se transformar em mais um procedimento habitual e até “recomendável”, socialmente falando (para poupar recursos, por exemplo).
Uma visão meramente abstrata da liberdade põe esses dois doentes no mesmo projecto: ambos são senhores do seu sorte.
Mas uma vez que prometer essa soberania quando existe um caimento que os separa?
3. E por falar em Isaiah Berlin: agora, não há desculpas, leitor brasílico! Os interessados no pensamento dele têm nas livrarias um experiência recém-publicado, que é uma óptimo introdução à sua obra. O título é “Isaiah Berlin – Pluralismo e Dois Conceitos de Liberdade” (É Realizações, 166 págs.), da autoria de Leandro Bachega. Meu colega Luiz Felipe Pondé escreve o prefácio e dirige esta promissora coleção de sátira social.
Com lucidez e rigor, Bachega reconstrói os passos essenciais do pensamento político de Berlin: um pensamento antiutópico que reafirma a multiplicidade de valores que os seres humanos sempre procuraram ao longo da história. Ler Berlin, hoje, é evitar as tentações absolutistas de quem oferece “soluções finais” para os problemas da vida em sociedade. O melhor que podemos fazer é estabelecer compromissos entre valores concorrentes para evitar “extremos de sofrimento”. O realismo de Berlin é mais valioso do que os delírios messiânicos que andam novamente à solta.
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