Ao estabelecer o traumatismo de um evento pessoal trágico uma vez que catalisador de resoluções no presente, o “Halloween” de 2018 virou um marco para a produtora Blumhouse. Desde portanto, vários de seus filmes de horror adotaram a “privatização do traumatismo” uma vez que mecha de dramas, fazendo com que manifestações insólitas características do gênero surgissem por metáforas e simbolismos de salvação ou superação. Ora isso foi certeiro, uma vez que em “O Varão Invisível”, de 2019, ora gerou desastres autocomiserativos, uma vez que “Nanny”, de 2022.
“A Mulher no Jardim” ilustra o cansaço do que se tornou um jeito formulaico de usar o horror e o suspense para justificar enredos nem sempre tão interessantes uma vez que a construção de algumas atmosferas quer fazer crer. Mas tanto levante quanto outro recente trabalho da Blumhouse, o muito bom “Drop – Prenúncio Anônima”, enfrentam a fadiga assumindo a consciência do desgaste e garantem-se no impulso mais do artesanato do que de truques alegóricos.
Para um salto desses, é necessário um condutor de eficiência na direção. Nisso a produtora de Jason Blum convocou o espanhol Jaume Collet-Serra para o serviço.
Depois de livrar do opressão do planeta Dwayne Johnson, com quem fez “Jungle Cruise” e “Adão Preto”, Collet-Serra está numa tempo de relaxamento, em contato direto com o tipo de material que o move com paixão. No ano pretérito, lançou o thriller “Bagagem de Risco”, sucesso na Netflix, e agora retorna ao horror, no qual começou nos anos 2000, quando emendou “A Mansão de Cera”, em 2005, e “A Órfã”, em 2009.
A união de Collet-Serra com a Blumhouse é o tipo de encontro que faz “A Mulher no Jardim” transitar entre o filme de assombração mais grosseiro e referencial e a elegância de um drama familiar sobre perda, luto e dificuldades de adaptação.
Em cena, uma mulher cuida de dois filhos numa mansão isolada à borda de estrada. Numa manhã qualquer, a família vê pela janela uma senhora toda vestida de preto sentada numa cadeira no meio do descampado e de frente à residência do trio. Logo essa sintoma precisará ser encarada para além da compreensão lógica, não antes de apavorar os personagens com sua presença esquisita e alguns lances aparentemente sobrenaturais.
A princípio “A Mulher no Jardim” é um história tradicional de mansão assombrada, logo amplificado pela estranheza da fantasmagoria, que se posiciona do lado de fora, e não dentro, uma vez que é mais convencional, e pelas ações ativas dos personagens, que insistem em enfrentar a ameaço de frente, mesmo ela estando quase sempre imóvel.
O filme explicita que a tal mulher é uma inquietação materializada num corpo. O quanto disso é símbolo e o quanto é concreto acaba por ser o jogo mais interessante no roteiro de Sam Stefanak.
Collet-Serra, habilidoso na constituição de quadros, nas noções espaciais dos ambientes limitados onde acontecem muitas de suas tramas e no série fluido da história, circula com relativa tranquilidade pelos desdobramentos convolutos. As várias revelações, nem sempre muito dosadas no texto, quase desequilibram o conjunto, mas o cineasta passa ligeiro em procura de sempre retrabalhar o clima universal de inquietação.
O filme promove uma luta interna entre a espiritualidade epifânica de M. Night Shyamalan em “A Vila”, de 2004, e o rigor da seriedade temática de Jennifer Kent em “O Babadook”, de 2014. A ambivalência se resolve menos pela nitidez narrativa do que na atmosfera persistente de incerteza emocional.
Entre um ponto e outro, “A Mulher no Jardim” se acomoda para falar de assuntos caros à saúde mental e às angústias dos confusos tempos atuais, assuntos que até um blockbuster uma vez que “Thunderbolts*” resolveu trazer para si. Fazendo isso, metaforiza os confrontos uma vez que forma de resignação e solução, mas consegue alguns respiros nessa estrutura.
O que de mais intenso o filme traz para quebrar os clichês da privatização do traumatismo é propor arranjos quase mefistotélicos entre as feridas abertas e as cicatrizes.
Ou seja, ainda dentro dos temores em cena, o horror em “A Mulher no Jardim” advém da impossibilidade de ele ser derrotado por completo. Ao seu modo direto de expor um enredo não tão objetivo, Collet-Serra sabe que a boa frase criativa se garante até em conteúdos medíocres.