'a Música Natureza De Léa Freire' Traz Cinema Experimental

‘A Música Natureza de Léa Freire’ traz cinema experimental – 18/07/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

A chave para entender “A Música Natureza de Léa Freire” está depois dos créditos finais. A protagonista aparece de camiseta preta com a frase: “Desvelo, velha maluca!”.

Na língua portuguesa, a origem da vocábulo maluco é controversa. A maioria dos linguistas diz se tratar de um tipo doido, louco ou extravagante. Alguém que sofre das faculdades mentais.

O professor José Pedro Machado, responsável de um dos mais antigos dicionários etimológicos da língua portuguesa, acredita que maluco venha das Ilhas Molucas. Um arquipélago indonésio que era a única manadeira de noz-moscada e cravo do planeta até o século 15. A resistência dos nativos ao extrativismo europeu os fez serem apelidados de loucos selvagens.

O pequeno introito ajuda a nos aproximarmos de Léa Freire, essa espécie de pessoa selvagem que renuncia à vida dita civilizada. Mesma ruptura que o diretor Lucas Weglinski, responsável também pela montagem, faz nas sequências em que a protagonista toca qualquer instrumento. A sequência final, depois dos créditos, chega a ter mais de dez imagens ao mesmo tempo na tela.

Não com uma partilha rígida entre elas, mas com certa selvageria visual. Cada frame tem vida própria, imitando até um trem em movimento. Em outro momento, os cortes acompanham o beat da música, do qual título “Turbulenta” parece dialogar com a própria estrutura da obra.

Não é um tradicional documentário de cabeças falantes, nem mesmo uma justaposição de cenas aleatórias. Enquanto ouvimos um agudo do piano, por exemplo, não vemos o dedo na tecla. Aparece na imagem a respiração de Léa, a veia saltando no pescoço. O que se vê é o que se sente.

Lucas já tinha assinado, em parceria com Joaquim Castro, a direção e montagem de outro documentário subversivo, “Máquina do Libido”, sobre os 60 anos do Teatro Oficina. A diferença é que em “A Música Natureza de Léa Freire”, feito dois anos depois, o material de registro não é preponderante na obra. Se José Celso Martinez já é figura notória dos brasileiros, Léa Freire é uma ilustre desconhecida da maioria de nós. O diretor mesmo só foi conhecê-la profundamente em 2018, quando o projeto do filme começou a nascer.

Por que não conhecemos Léa Freire? A nossa ignorância sobre a protagonista do filme de Lucas Weglinski diz muito sobre o projeto de país em que vivemos nos últimos anos. Um Brasil que, historicamente, destaca o varão enquanto ser extraordinário e relega à mulher o espaço de coadjuvante até na própria história.

Pense rápido na MPB, pense rápido na música de concerto. Quantas mulheres de destaque surgem na sua memória? A sequência do filme que mostra a participação de Léa, que ocupa esses dois espaços, nas aulas de uma renomada escola de música dos Estados Unidos é o retrato desse cenário inóspito na cultura brasileira. Enquanto consumimos os enlatados que de fora, quem é de fora consome a arte que produzimos cá.

A reflexão que o filme traz sobre a artista, que rompe barreiras entre o erudito e o popular, se aplica ao próprio documentário em si. O ritmo é mais lento, os planos mais fechados, a iluminação é carregada nas sombras. Não é um filme para se ver no celular ou no computador.

“A Música Natureza de Léa Freire” foi feito uma vez que uma experiência de cinema e planejado para novas possibilidades de percepção da obra. Destaque para o imagem de som, que promove uma submersão nessa música natureza, uma vez que Léa Freire define o próprio trabalho. Uma música mais sensível, recusando o massacre sensorial da vida contemporânea.

Não espere encontrar no filme uma estrutura clássica de biografia, pelo contrário. A luz está somente na música da protagonista. Fiquei instigado com as questões pessoais dela: maternidade, família, depressão, distanciamento social por motivo da pandemia de Covid-19.

Tudo isso é citado, mas não e aprofundado. E não cabe a mim, uma vez que crítico, criticar as ausências da obra. Prefiro enaltecer aquilo que o diretor fez questão de costurar na colcha de retalhos de uma vida tão complexa uma vez que a de Léa. Uma mulher de vanguarda, proeminente em cenários masculinos. Uma compositora brasileira em origem, e paradoxalmente universal. Uma pessoa que passou a vida toda reescrevendo as possibilidades de horizonte.

Folha

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