O grande drama encenado na cerimônia de fenda das Olimpíadas de Paris foi o rapto da “Mona Lisa” de seus aposentos no Museu do Louvre. De novo, isso porque a tela de Leonardo Da Vinci já foi roubada na vida real e ficou dois anos desaparecida até ser encontrada na Itália de seu fundador, escondida numa mala num quarto de hotel.
Seria essa uma metáfora para uma núcleo da França que se perde em tempos de globalização e ondas migratórias avassaladoras num mundo marcado por guerras? Talvez não precisemos ir tão longe. Toda a sarau, sob chuva poderoso ao longo do rio Sena, misturou as mais profundas raízes da cultura francesa com a verdade do país multiétnico e marcado por tensões de agora. É uma França de filhos de imigrantes, uma novidade parábola, talvez não tão muito acabada, do lema paridade, liberdade e fraternidade.
Se a “Mona Lisa” sumiu do Louvre, quem deu as caras em réplicas gigantescas saindo da chuva turva do Sena foram os personagens de outras telas menores do montão do maior museu do mundo. Uma tentativa de substanciar que, desde os primórdios, Paris era o epicentro da cultura, seja por quem veio por livre vontade, seja pelo que foi pilhado de outros continentes em aventuras imperialistas, um mea-culpa superabundante.
Todos desviavam, digamos, dos padrões ocidentais, desviavam da norma. Lá estava o jovem mancebo de turbante que encanta um varão mais velho, em nítida celebração do paixão queer, de uma tela pérsio do século 17. Também uma jovem negra de turbante, antes conhecida exclusivamente porquê “a negra” e depois ganhando o nome de Madeleine, e o perfil da divindade egípcia Hathor, retirada de uma tumba no Egito e hoje no Louvre.
Não espanta que o trajeto dos barcos das delegações, serpenteando pelo coração de Paris, tenha pretérito por dois museus. Depois do Louvre, o D’Orsay, lar dos impressionistas, que não apareceram na cerimônia, mas nos lembram o poder do patrimônio histórico que os franceses ostentam porquê belos dentes.
Zero de Manet, Monet, mas muitos clássicos e clássicos obscuros. Dali, embarcamos numa viagem espacial em que esbarramos com o Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry, até que a “Mona Lisa” é encontrada pelos minions de “Meu Malvado Predilecto” boiando nas águas do Sena.
Impossível esperar muita congruência de um show feito para deleitar a todos, e por isso não agrade a ninguém. O espetáculo, grandioso, é também falho, feito para as câmeras de televisão e talvez ilegível para quem visse ao vivo, já que as partes pré-gravadas, com belas sequências —embora muitas lembrassem o ar publicitário dos comerciais da Air France— costuravam a narrativa.
Lady Gaga, cantando “Mon Truc en Plumes”, clássico dos cabarés, em galicismo, rodeada de muitas plumas, foi um belo cartão de visitas no início do show. Aya Nakamura, uma das artistas mais incensadas da França atual e explícita em seu posicionamento contra o progressão da direita no país —e até por isso níveo da ira de muitos que não a queriam sob os holofotes—, foi fantástico ao mesclar suas canções aos clássicos da chanson française de Charles Aznavour.
Música, literatura, artes plásticas, dança, cinema e voga, tudo da cultura francesa deu as caras —a voga em nítido “merchandising” com os baús da Louis Vuitton para armazenar as medalhas olímpicas e depois num desfile com toques de ballroom que virou pista de boate no termo da sarau.
Fora do estádio, porquê estamos acostumados a ver nas Olimpíadas, a sarau ganhou as dimensões de uma das grandes metrópoles europeias, abraçou a Île de la Cité e sua catedral de Notre-Dame ainda em restauro depois do incêndio. Mas, apesar da cobiça, o impacto se perde ao longo dos quilômetros navegados pelo Sena, uma sarau em movimento que vai deixando um rastro de espectadores órfãos pelo caminho.
O esforço de se mostrar plural, a capital do mundo que já foi antes de perder o posto para Novidade York, era nítido em Paris. E nítida a mensagem de que essa é uma novidade França, um país que por pouco não foi engolido pela avalanche da ultradireita que varre o mundo, um país que ferve no coração de uma Europa em transe. É também um país que se vê diante de um espelho borrado. Seria a Gioconda a faceta da França? O mancebo pérsio? A divindade egípcia?
Os pilares dessa núcleo da identidade francesa parecem embaralhados, e talvez, apesar do show irregular, isso seja o ponto poderoso do espetáculo exibido ao mundo. Alegorias falham, também porque essas novas alegorias do charme à francesa ainda estão em construção. Estamos diante de alicerces meio frágeis, um oração um tanto errático, mas que bom que se discuta, talvez com uma boa taça de vinho.