Ailton graça vira uber e militar em 'gente é gente?!'

Ailton Graça vira Uber e militar em ‘Gente é Gente?!’ – 14/04/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Ao protagonizar a peça “Gente é Gente?!”, em papeleta no Sesc Vila Mariana, Ailton Perdão retorna às suas origens. Tem um tanto de simbólico em o ator voltar a trabalhar com o diretor Marco Antônio Rodrigues e tanta gente que conheceu no Folias D’Arte, grupo de teatro fundamental para sua trajetória, logo quando a Orbe encerrou seu contrato fixo, porquê tem feito com a maioria dos artistas.

Quando o Folias começou a buscar o elenco da peça “Babilônia”, que estreou em 2001, Perdão queria voltar ao teatro pelas beiradas. Há anos se dedicava principalmente à dança folclórica e ainda não se sentia pronto para voltar à cena. Por isso, ele se estressou quando sua mulher, Kátia Naiane, disse que havia inscrito seu nome para os testes da peça. Mas fez a audição e foi reconhecido.

Perdão estava em papeleta com a companhia quando tentou um papel menor em “Carandiru”, conquistou Héctor Babenco e acabou interpretando Majestade, um dos personagens principais. Rodrigues reconta a cena de quando Perdão foi dar a notícia. “A gente vai ter que cancelar umas sessões, porque eu vou fazer a filmagem lá”, teria dito o ator. “Não tem problema, meu paixão, fortuna. Vou te substituir”, o diretor diz ter respondido. “A Orbe não me patrocina.”

Perdão disse a Babenco que não sairia de sua peça. “Mas é cinema”, respondeu o cineasta. “Sim, mas é teatro.” Essa foi a tréplica. No término, o ator só perdeu uma data da temporada, e o gênio do cinema teve que arcar com os custos da noite. “Para não pensarem que o teatro é uma arte menor”, justifica Perdão. “É a arte primeira, que deu vazão para todas essas outras plataformas artísticas.”

Durante “Gente é Gente?!”, sua atenção também foi disputada pelo audiovisual. Em meio a gravações para “Volta por Cima”, próxima romance das sete da Orbe, não pôde escoltar de perto a construção do espetáculo, e coube a Naiane, sua companheira também em cena, mantê-lo atualizado de tudo o que estava acontecendo.

A peça foi adaptada por Silvia Viana de “Mann ist Mann”, ou um varão é um varão, texto escrito por Bertold Brecht no entreguerras. Na adaptação, Gesualdo Rútilo, um motorista de aplicativo, é cooptado para substituir um militar que ficou recluso num terreiro de Candomblé —no original, um monastério— e acaba convertido pelo Tropa, abrindo mão de sua identidade.

O projeto surgiu durante a pandemia, por desculpa do bolsonarismo. “Não do Bolsonaro, porque não nos interessa de jeito nenhum chutar cachorro morto”, afirma Rodrigues, que conversou com a reportagem ao lado de Zeca Baleiro, responsável pela trilha sonora da peça.

O artista seguiu o pedido de Rodrigues e encheu a peça de samba, e o diretor trouxe os elementos carnavalescos porquê uma forma de localizar o teatro de cabaret brechtiano, popular porquê o seu. Sobrou espaço para tango, joeira e bolero, tudo apresentado “mezzo ao vivo”, nas palavras de Baleiro, pois segmento da trilha foi pré-gravada.

A dupla está afinada quanto às expectativas para a peça. Ambos queriam questionar a situação da identidade e da subjetividade no Brasil e no mundo hoje. “O país ficou dramático, dividido entre bons e maus. Essa separação —que também está na esquerda, não só na direita— criou uma vácuo em relação à nossa capacidade de imaginar”, afirma Rodrigues.

“Hoje você não pode rir de zero, tem que descobrir que tudo é muito sério. E não estou falando que isso é da esquerda. O mundo está assim. Bolsonaro riu às pampas quando as pessoas estavam morrendo na pandemia, agora chora porque não pode pegar um avião.”

Assumidamente à esquerda do espectro político, ambos são críticos ao policiamento do que é patente ou falso que acontece em segmento do campo. “Tudo tem um modo de agir, se você não agir conforme, você está ferrado. Não é só cancelamento. É um grande guarda-chuva de bom-mocismo”, diz Rodrigues.

Somando-se a isso, a dupla vê porquê segmento do problema a tendência atual à literalidade, que acredita resultar, em partes, de uma crise universal no repertório das pessoas, intensificada pelo surgimento de algoritmos que distribuem conteúdos para nichos específicos, limitando a variação do que cada um consome, e também de um ativismo exacerbado.

“A gente não é contra o politicamente correto. Tem coisas que são urgentíssimas”, diz Baleiro. “Se negarmos que certas causas sexuais, raciais e de gênero são urgentes de se discutir, estaríamos sendo irresponsáveis e não acompanhando o tempo em que vivemos. O problema é porquê fazer disso um exposição que não mate a subjetividade da arte, a provocação.”

Para isso, apostam na metáfora e todas as suas consequências, diz Rodrigues, porquê a parábola, a ironia e o humor. “A função do teatro é revelar a estrutura e produzir angústia”, afirma o diretor. “Se a nossa angústia for legítima, ela vai ter qualquer efeito sobre você. Se não for, o que eu posso fazer?”

“O espetáculo não é panfletário, mas pinçou um tanto muito importante da vida e transformou nessa tragicomédia”, acrescenta Perdão, que relaciona Gesualdo, seu personagem, com o bolsonarismo e a transformação na identidade das pessoas. “Muita gente que está à margem, à cercadura da miséria, está vestindo uma camisa verdejante e amarela e indo para a avenida.”

Ele labareda a atenção também para o trabalho “uberizado” de Gesualdo. Para ele, hoje todo mundo se acha empreendedor, e as pessoas passam a nutrir ódio contra quem tem carteira registrada. “Eles não têm teoria das conquistas que foram feitas do ponto de vista do trabalho, de uma luta que não é de agora”, afirma. “Eu sou feliz por esse tempo todo ter sido registrado na Orbe. Fui CLT. Dou graças a Deus.”

Teatro, audiovisual e atividade política disputam a atenção de Perdão nessa novidade tempo fora da Orbe. A saída o liberta para trabalhos fora do selo Globofilmes, mas seu grande projeto é a Lavapés Pirata Preto, escola de samba que ele preside desde 2019.

O ator articula com vereadores e deputados para conseguir uma morada própria para a escola. Seu projecto é transformá-la num espaço de formação, devotado a discutir as pautas de pessoas pretas e marginalizadas, com aulas de gastronomia, artes e atendimento médico e psicológico.

“É a participação mais ativa da escola porquê um quilombo cultural urbano. Para outras pessoas, pode parecer uma conquista menor, mas vai ser muito grande para a gente se conseguirmos colocar um pretinho, uma pretinha dentro de uma faculdade, de um lugar onde ele possa ser um grande dirigente de cozinha.”

Todos esse grupo que se formou em torno do Folias D’arte, que não é oficialmente uma trupe, mas cresceu em torno das mesmas ideias, compartilha dessa vontade de ter na cultura uma forma de interferir no mundo.

“A pessoa tem que trespassar pensando em transformar a própria vida, o mundo —ou em transformar zero, deitar na rede e esperar o término chegar, mas tem que trespassar inquieta. Ou trespassar contente, esperançosa. Não importa, mas tem que se sentir mexida”, diz Baleiro.

Folha

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