“Ainda Estou Cá” é um inegável fenômeno de público e sátira, adoptado incondicionalmente pelos brasileiros. As indicações em premiações hollywoodianas se tornaram sinais de que o cinema brasílio, se adequado ao paladar do drama vendável (dito “universal”), pode ser aceito pelo “melhor do cinema”.
Mais ainda, uma promessa de porvir se os cineastas brasileiros seguirem seu exemplo. Por isso essa aprovação cega e torcida de futebol apaixonada: “Ainda Estou Cá” no Oscar não é só um filme, é a salvação da pátria.
O filme de Walter Salles segue um tipo de filme para exportação: conhecimento técnica e capacidade de recitar a linguagem cinematográfica para produzir efeitos de emoção, sem agredir ou tensionar questões locais.
Sua ênfase está na narrativa íntima, na memória, nas relações pessoais em detrimento da história e da veras social, mesmo que isso esteja presente uma vez que tecido de fundo difuso. É uma reedição do drama convencional com face de Oscar, apostando na remontagem verossimilhante dos cenários, a centralidade do roteiro em detrimento da imaginação visual, a emoção personalista vinculada ao elenco de estrelas.
Isso seria o filme de caráter “universal”, em oposição ao aportado no território, com marcas locais e, principalmente, com um tanto a proferir do ponto de vista da arte e da política. “Ainda Estou Cá” é um caso bem-sucedido de “cinéma brésilien de qualité”, em referência aos filmes que dominavam a produção francesa nos anos 1950: rico em produção, pobre de ideias.
Porém, é importante marcar que o cinema brasílio vinha por outra vereda. Nas últimas duas décadas, a produção, antes concentrada no Rio e em São Paulo, se nacionalizou e surgiram cineastas de projeção internacional, uma vez que Kleber Mendonça Rebento, Karim Aïnouz, Gabriel Mascaro, com propostas de produção mais despojadas e arriscadas do ponto de vista da linguagem. Um cinema com frescor artístico e sengo à veras brasileira, uma vez que “O Som ao Volta”, “Boi Neon”, “Bacurau”, “Marte Um”. “Ainda Estou Cá”, para além dos efeitos imediatos, é um passo detrás.
Alguém pode discutir que o mesmo vale para “Medial do Brasil”, mas no contexto de reconstrução do cinema brasílio da idade, o filme de Salles apontou uma possibilidade de sedução do público, tanto cá quanto no exterior. Aliás, a trajetória de Dora promovia um encontro entre o Brasil urbano e o interno, pagando tributo à história do cinema brasílio e à veras social.
A força do filme vem do encontro dos contrastes, da mulher cosmopolita entrando na vetustez com o menino ignorante, despovoado à própria sorte, o choque de duas vivências antagônicas. Salles conseguiu sintetizar o encontro dos diferentes Brasis em imagens fortes, uma vez que a foto na quermesse, a visualidade das casas populares ou simplesmente o ritmo dos gestos de Fernanda Montenegro. A emoção vem de dentro da ficção.
Em “Ainda Estou Cá” acontece o oposto. A narrativa se concentra e se encerra em Eunice, em quem a emoção também se concentra. Utiliza chavões visuais uma vez que “personagem introspectiva boiando na chuva” ou a textura da película em super-8 para marcar a passagem de tempo. Usa o diálogo para dar informações diretas para o testemunha e a música para pontuar o momento exato que o público deve se emocionar.
A veras política é só um pormenor na trama —o que suscitou os poucos questionamentos ao filme até agora. Não promove um acerto de contas com a ditadura nem pontua sua legado hoje. Ela serve exclusivamente uma vez que tecido de fundo para dar um paladar de veras a esse grande teatro sofisticado que procura envolver os espectadores pela identificação com os atores, sem grandes momentos visuais para além da remontagem de idade.
Os elementos estéticos dão fardo dramática à presença de Eunice apesar do drama sem contrastes, choques ou reflexões políticas. Se “Ainda Estou Cá” não é um filme simplório, está na conta da simpatia do elenco.
O problema de “Ainda Estou Cá”, logo, não é a ditadura e seu retrato. Se ele é rico em produção e pobre de ideias é porque Salles não consegue edificar um mundo ficcional que diga um tanto para nossa veras além da encenação do texto pelos atores.
A emoção vem de fora para dentro, da linguagem, forçando a ficção. Isso tem sido tomado uma vez que “universal”. Na verdade, é genérico, um manobra estético que poderia ser sobre qualquer pessoa em qualquer outro contexto. Ao contrário do que acredita a torcida de prêmios, “Ainda Estou Cá” é muito mais um sintoma da nossa carência em material de cinema do que uma grande arte.