'ainda Temos O Amanhã' Deve Mais às Mulheres Que Ao

‘Ainda Temos o Amanhã’ deve mais às mulheres que ao cinema – 10/07/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

“Ainda Temos o Amanhã”, de Paola Cortellesi, trata da primeira eleição em que as mulheres tiveram recta a voto na Itália. Isso aconteceu em 1946, no subitâneo pós-guerra, e é uma pena que os filmes neorrealistas não tenham abordado o tema, talvez por terem sido feitos por homens, talvez machistas uma vez que o marido de Delia, vivida pela própria Cortellesi.

Não tão machistas, espera-se. A existência de Delia é árdua, e não exclusivamente pela pobreza. Ela também colheita quase diariamente de Ivano, o marido. Ele bebe e fica violento. Quando não bebe, também não é lá essas coisas, mas é o momento em que, por vezes, pede perdão pelo comportamento animalesco e promessa paixão eterno, essas coisas.

O “maitre à penser”, vamos expor assim, de Ivano é seu inacreditável pai, Ottavio. Além de tactear a nora sempre que pode, dá conselhos ao rebento. O mais relevante deles diz saudação ao trato com as mulheres. Ele diz que não deve espancar com frequência na mulher, porque ela “pode se avezar”. Roupão, sim, mas uma surra réplica, que ela não esquecerá.

Nesse envolvente bestial vive Delia, mas também a filha, Marcella, e dois filhos menores. Marcella namora e talvez logo fique prometida de Giulio, gentil rebento de uma família enriquecida durante o fascismo por meios muito pouco lícitos. Giulio é gentil, sim, mas flashbacks nos mostram que Ivano também era uma formosura na idade do matrimónio.

Porquê se vê, Delia não tem zero de animador a esperar da vida. E nem nós do enredo. A direção de Cortellesi, setor em que estreia, também não é de grande ajuda. Há cenas muito escritas, uma vez que a do encontro das famílias dos dois namorados, com todas as suas contradições.

A família de Giulio também é metida a besta. A mãe do rapaz acha a comida preparada por Giulia uma absoluta pobreza. Teme-se que Ivano tome um porre, ou que seu pai apareça com grosserias, ou que os meninos falem palavrões.

É pena que Cortelesi picote as cenas para introduzir reações dos participantes em primeiro projecto, com ênfases tão pronunciadas (e mal interpretadas) que até parece estarmos diante de uma representação teatral ginasiana.

E, apesar disso, há questões inquietantes que atravessam o filme. Não em 1946, mas hoje, o número de assassinatos e estupros de mulheres é mais que medonho, insuportável. O mesmo indumento que justifica a existência deste filme —a discussão da situação feminina na sociedade— força a observar também os problemas que o filme carrega, não os de que trata.

Pode-se admitir, por exemplo, que as personagens sejam exclusivamente tipos. Isso engendra uma perigosa fileira de clichês, que devem trasladar, em todo caso, o comportamento de pessoas uma vez que Ivano.

Ao mesmo tempo, não é tão fácil engolir uma encenação em que a qualquer ação corresponde uma reação espantada dos presentes. E isso acontece todo o tempo. Do mesmo modo, o preto e branco da retrato lembra não o do neorrealismo, mas daquele que existia no primícias do do dedo.

Também é difícil engolir um roteiro que se dispõe a iludir o testemunha com insinuações de romance extraconjugal para saltar à questão médio do filme, que, aliás, nem tinha sido proposta até ali.

E por aí vamos, num filme que procura se declarar uma vez que didático, isto é, que está ensinando um pouco a outras pessoas, seja às mulheres, vítimas de violência, seja aos homens, os violentos. Mas é inevitável perguntar a quem, por fim, dirige-se “Ainda Temos o Amanhã”. Às mulheres, sem incerteza. Mesmo àquelas na meia-idade, não desistam de viver, apesar de tudo.

Embora esses propósitos sejam muito contemporâneos, seus méritos dizem saudação muito mais ao lugar da mulher na sociedade e na família do que ao cinema propriamente dito. E é espantoso que, apesar de suas muitas fragilidades, “Ainda Temos o Amanhã” tenha oferecido a Cortellesi o prêmio mais relevante da indústria italiana, uma espécie de Oscar de lá, na categoria de melhor direção, em 2023.

Sabe-se que a ideologia tem tomado um espaço grande (para mim, excessivo) na arte contemporânea, a ponto de em várias situações praticamente substituir a arte. Mas uma roboração assim é mais um sinal simples de que o pensamento cinematográfico de um país tão relevante uma vez que a Itália está, pelo menos, periclitando.

E que o “problema contemporâneo” vede qualquer pensamento sobre o trabalho cinematográfico realizado. Não estamos em qualquer lugar nem em qualquer estado: a lembrar que a também italiana Alice Rohrwacher se destacou em Cannes, no ano pretérito, com o belíssimo “La Chimera”.

Entre esses dois extremos, o cinema italiano ainda procura se reconhecer, nesse momento em que renasce.

Folha

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