Alice Caymmi Celebra Os Dez Anos De 'rainha Dos Raios'

Alice Caymmi celebra os dez anos de ‘Rainha dos Raios’ – 14/08/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Alice Caymmi é obcecada por mulheres assassinas. Consome horas de séries de “true violação” sobre o tema. Assistindo a uma delas, conheceu uma que botou queima no marido. No momento em que a personagem decidiu incendiá-lo, começou a tocar “El Paixão”, hit espanhol da dez de 1980 na voz da cantora Massiel. Capturada pela melodia, Caymmi começou a traduzi-la —nascia ali “O Paixão”, versão que integra a recém-lançada edição deluxe do álbum “Rainha dos Raios”, em celebração aos dez anos do disco.

A melodia está no repertório do show que a artista estreia nesta quarta-feira, no Teatro Oficina, com direção de Paulo Borges. “Fui entendendo ao longo da cena que essa letra era muito esquisita”, diz ela. “Vem te seduzindo para dentro da lesma do paixão e depois te joga no inferno. Te mostrando as últimas consequências do paixão enamorado, até onde ele pode chegar, a lesma psicológica e física. Até hoje, quando termino de cantá-la, estou tremendo.”

Um momento específico da melodia afeta Caymmi de forma mais aguda. “Ela secção de uma descrição simbólica do paixão”, diz a cantora. “É uma nevoeiro, um som, uma luz… Mas a certa profundidade, num verso, dá uma viradela, quando ela diz que ele te empurra e te puxa e te leva pra trás. Começa a permanecer físico. Normalmente a violência doméstica começa assim, eu já vi e já sofri, isso. A partir daí, a coisa vai degringolando na letra de um jeito horroroso. É o lugar mal-parecido da paixão, aonde ela pode chegar.”

A gravação, produzida por Diogo Strausz —o responsável por fabricar a sonoridade de “Rainha dos Raios” há dez anos— é o ponto de partida do projeto que engloba o show e o álbum deluxe, que além de “O Paixão” tem três remixes assinados pelo produtor Maffalda. Tudo conceitualmente atado por uma única teoria, a fúria, que aparece uma vez que complemento ao título original.

Caymmi foi à mitologia grega para riscar “Rainha dos Raios: a Fúria”, uma vez que foi batizado o show e a novidade versão do álbum. “O ódio leva à exclusão, é o sentimento da extrema direita”, explica a cantora. “A fúria vai em outra direção, é um direcionamento da raiva para um termo justo. Na Grécia Antiga, as Fúrias são as filhas de Hades e Perséfone que saem do submundo de Hades para vir à Terreno para trazer justiça. E a justiça que eu busco é uma justiça para os nossos corpos, que estão sobrecarregados.”

A reflexão da cantora secção de seu próprio corpo, desde sempre entendido uma vez que fora do padrão. Um padrão que é em si uma das injustiças contra a qual a fúria de Caymmi se lança —injustiça que é capaz de ver saúde na doença. “Quando emagreci por conta de uma crise de inapetência, me chamaram pra falar sobre a perda de peso de uma forma positiva. Eu falei: ‘não, porque eu tô triste! Eu tô doente, caralho’.”

Caymmi não se limita a uma revolta pessoal, no entanto. “Hoje há um fluxo de informação e de trabalho que provoca um surto coletivo de exaustão e de distorção de imagem”, avalia a artista. “As pessoas não conseguem dormir, as pessoas não conseguem manducar, estão fazendo o trabalho de cinco pessoas pra lucrar um salário de meia. Todo mundo é mal-parecido, ninguém se sente muito. Ninguém se enxerga, ninguém entra em contato com o próprio corpo. Logo, o teatro é um lugar muito importante para a corporificação dessa justiça. Justiça aos nossos corpos exaustos e sobrecarregados.”

O espetáculo, adianta Caymmi, tem uma vez que um de seus focos centrais exatamente a teoria de distorção de imagem. “O Paulo [Borges, diretor do espetáculo e criador da São Paulo Fashion Week] trouxe a perspectiva da tendência”, afirma. “Ele está com uma inquietação muito grande sobre a deformação dos amigos e amigas com as plásticas, com as injeções, com toda essa coisa que se dá por conta dessa angústia coletiva.”

A estreia dela no Oficina marca um reencontro. Foi lá que ela viu, aos 19 anos, “Bacantes”, sob direção de Zé Celso. “Aquilo mudou minha vida para sempre”, afirma a cantora. “Me debrucei muito na faculdade de Teatro sobre os trabalhos de Zé Celso, todo o fundamento helênico, toda a narrativa de Dionísio, toda a questão das bacantes… Ou seja, o Oficina não é só uma coisa que eu sabor, é secção de todo o meu estudo, de tudo que eu fiz pra que pudesse ter o meu trabalho no lugar em que ele está.”

Estar naquele palco é de alguma forma também um acerto de contas. Naquela estação, ela chegou a ter a oportunidade de fazer um teste para o Oficina, mas teria que morar em São Paulo. Sentia-se muito novidade para a mudança e acabou deixando a chance passar. Anos depois, mudou-se para a cidade. “São Paulo acolhe o meu trabalho. Me dei conta que eu morava no Rio só para ir à praia.”

“Rainha dos Raios: A Fúria” é a segunda secção de uma trilogia. “São três as luas, as Fúrias, as Iyamis no candomblé… É um número representativo do ciclo feminino”, diz. “A terceira secção será eu mais para frente, numa outra período do meu corpo, da minha feminilidade.”

Entre as justiças pelas quais a artista clama, há o projecto de lançar um olhar seu sobre seu avô, Dorival. A cantora conta ter ficado muito partida nos últimos anos com o alinhamento de Stella Caymmi, sua prima e biógrafa de Dorival, com Bolsonaro e, sobretudo, com Olavo de Roble. “Isso me atravessou de um jeito muito violento”, conta a artista.

“Eu fiquei muito puta”, prossegue Caymmi. “E essa raiva ainda tá comigo. Eu tenho todo um projeto de gestão da imagem e da obra do meu avô. Porque se você for parar para pensar que a biografia do meu avô mais confiável é feita por uma olavista, você começa a entender que faltam muitas coisas. Quero trazer à tona a verdade, e não o que acham que ele deveria ser. Agora eu tô cuidando de mim, mas em dada hora eu vou surgir uma vez que a neta que eu sou, comprometida com ele e com a imagem dele. Não vou deixar o meu nome ser arrastado na lodo dessa maneira.”

Folha

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