[RESUMO] Ao entender as imagens uma vez que secção da engenharia simbólica do mundo, abraçando a revolução dos computadores há quatro décadas, Andy Warhol abriu os caminhos para aprofundar o debate sobre o uso da lucidez sintético hoje na arte.
Há 40 anos, numa noite de gala no Lincoln Center, em Novidade York, Andy Warhol se sentou diante de um computador Amiga 1000 e coloriu, ao vivo, o retrato da cantora Debbie Harry.
Ela era a líder da margem de new wave Blondie, e o artista, célebre pela sua intimidade com a tela de serigrafia, fazia sua “avant-première” numa interface gráfica. Não foi o primeiro encontro de Warhol com a grande novidade da idade. São famosas as fotografias que registraram a apresentação de um dos primeiros computadores da Apple feita por Steve Jobs, seu fundador, a Warhol, Keith Haring e Kenny Scharf, no quarto de Sean Lennon um ano antes.
Todavia, foi aquela noite no Lincoln Center que entrou para a história. Primeiramente porque era Warhol pilotando um computador doméstico que gerava imagens, tocava áudio e executava vários programas ao mesmo tempo —uma novidade e tanto logo.
Mas, sobretudo, porque as imagens que Warhol fez com seu Amiga 1000, para além do retrato de Debbie Harry, ficaram perdidas por muito tempo. Elas foram recuperadas somente em 2014, por iniciativa do artista Cory Angel, na Universidade Carnegie Mellon.
O processo, que foi uma odisseia de arqueologia midiática, a partir dos disquetes do artista americano, está documentado em detalhes e disponível no site do Museu Andy Warhol. É nesse contexto que aquela noite de lançamento ganha relevância. Ela não foi simplesmente um mero evento de marketing, mas a frase de um mundo em mutação no qual seria provável programar a figura da imagem.
As celebridades que Warhol transformou em ícones, de Mao Tsé-Tung a Liza Minnelli, passando por Marilyn Monroe, Elvis Presley e tantos outros, poderiam virar dados —e os dados, por sua vez, poderiam vir a ser arte, uma vez que ele já havia feito com caixas de sabão Brillo e latas de sopa Campbell’s.
As imagens do lançamento do Amiga 1000, no entanto, não estão entre as obras que compõem a mostra “Andy Warhol: Pop Art!”, que começa nesta quinta-feira, no Museu de Arte Brasileira da Instauração Armando Álvares Penteado. Segundo a curadora Priscyla Gomes, o Museu Andy Warhol não tem os direitos de reprodução do vídeo —material que a interessava—, por se tratar de teor publicitário da trabalhador.
“Ainda que para nós essas imagens sejam performáticas”, diz Gomes. De todo modo, o vídeo está disponível no YouTube e, quatro décadas depois, estamos diante de 600 obras expostas de Warhol, atravessados pelas inteligências artificiais generativas.
Plataformas baseadas nessa tecnologia, tais uma vez que Midjourney, Runway e Sora, reorganizam grandes volumes de dados visuais preexistentes. São fábricas de imagens baseadas em estatística capazes de produzir novos arranjos em uma dinâmica que faz da repetição a sua assinatura.
A imagem, nos dias de hoje, é tão criada quanto processada —resultado de dados, padrões e inferências automatizadas. Os nossos rostos são vetores para câmeras de reconhecimento facial, nossos selfies se tornam metadados, nossas expressões entram em “datasets” que serão usados para treinar máquinas. Enquanto nós produzimos imagens, e também somos produzidos por elas, na Factory, desde a dezena de 1960, Warhol descentralizava a autoria, rodeado por assistentes, câmeras, cópias e serigrafias.
Essa maneira de fazer arte ecoa hoje os processos de geração com lucidez sintético, em que o toque cede lugar a um formato de autoria que se distribui entre o humano e o não humano, entre a intenção do responsável e o algoritmo.
Mas Warhol foi mais do que um marco da cultura visual que vivemos hoje. Sua obra explicita uma viradela fundamental, o de que o valor da imagem não está mais na sua singularidade, mas na forma uma vez que ela circula —e repercute— em um ecossistema midiático que essa mesma imagem multiplica e desgasta.
Ao repetir Marilyn Monroe, Mao Tsé-Tung, Elvis Presley e latas de sopa, o artista revelava que a imagem não é mais um revérbero do mundo, mas um componente de sua engenharia simbólica. A serigrafia não somente reproduzia. Ela automatizava, e o artista, com isso, assumia sua requisito de mediador —não mais da inspiração, mas dos processos.
É uma lógica que ressoa nos sistemas generativos contemporâneos, nos quais algoritmos aprendem a partir de arquivos massivos e produzem imagens que reforçam e reconfiguram o que já foi visto. A lucidez sintético não inventa —ela combina, simula e, sobretudo, estima possibilidades. Nesse quadro, o artista performa sistemas visuais complexos, alimentados por inúmeras fontes, que vão de “datasets” a plataformas de vigilância.
A preocupação de Warhol pelo acúmulo —manifestada nas “time capsules”, caixas arquivadas com recibos, cartas, fotografias Polaroid e objetos diversos— prefigura a compulsão contemporânea por arquivamento e indexação. Warhol, nesse sentido, é o grande precursor do arquivismo do ordinário —uma abordagem que reaparece em diversas práticas artísticas atuais, voltadas a increver o presente, convertendo fragmentos em dados, e dados em uma potencial imagem.
Mas o que torna Warhol crucial para pensar a cultura visual de hoje é o modo uma vez que ele nos convida a ver a imagem uma vez que um dispositivo de poder.
Ao processar de forma tecnicamente semelhante uma lata de atum, uma cadeira elétrica e a imagem de um líder político uma vez que Mao Tsé-Tung, ele sugere que a política e o consumo operam, na contemporaneidade, com os mesmos códigos visuais, e que no termo das contas todos somos moldados por eles.
Quando interagimos com sistemas de lucidez sintético, nos deparamos com imagens que não foram feitas por humanos nem destinadas a serem vistas, porque são codificadas para comerciar os aprendizados de máquinas. Elas existem para treinar, calibrar, reconhecer, categorizar. São um tipo de imagem que o artista e cineasta teuto Harun Farocki denominou de operacionais. Nesse ponto, Warhol permanece perturbadoramente atual.
No tempo da lucidez sintético, voltamos a Warhol —não uma vez que fetiche retrô nem uma vez que marco de um gesto principiante, mas uma vez que matriz sátira. Isto é, ponto de inflexão de outras histórias da arte, em que a imagem passa a ser validada, social e culturalmente, não pela unicidade, mas por aquiloque circula nos —e entre— os sistemas sígnicos, técnicos, econômicos et cetera.
Na exposição da Faap isso fica evidente. Principalmente por uma estratégia da curadora Priscyla Gomes, que implode os limites entre design gráfico e arte, entre edição e autoria, entre tendência e consumo, pondo em diálogo uma obra que é multimídia, mas também de interfaces múltiplas.
Todavia, se há um tanto que a unifica, para além do apego às cores vibrantes, é o contínuo apagamento da gestualidade, de imagens que só se revelam a partir de sua dimensão seriada, replicável, apropriada e ressignificada.
É justamente esse processo, que redimensiona o sentido da autoria, ao a distanciar do clichê do original e do objeto único. Esse debate se transformou em troada nas barricadas das redes sociais, alavancando o pressuposto que não existe arte criada com lucidez sintético, mas “pseudo-obras” feitas com um comando e muitos roubos.
Revisitar a vasta produção de Warhol, neste momento, evidencia o conservadorismo, implícito nesse tipo de abordagem, sobre as mediações entre as artes, as tecnologias e as relações de apropriação, citação e recontextualização.
Isso implica ignorar toda uma produção, dos últimos centena anos, que tensiona as premissas de gestualidade, do humanismo e do maquinismo, num círculo que vai de Marcel Duchamp e László Moholy-Nagy ao nosso presente.
Definitivamente, não basta digitar qualquer coisa. O resultado criativo com lucidez sintético generativa depende de um processo longo, criterioso, e que põe em tarifa uma de suas questões mais interessantes —é a qualidade das perguntas o que define o processo, e não o resultado almejado.
Entretanto, essa reflexão se perde, quando se secção da suposição de que a geração artística com esse tipo de tecnologia é puramente processo automatizado de “inputs” e “outputs”.
É preciso diferenciar os virais que tomam a internet ciclicamente da produção artística, que não tem zero a ver com febres que reproduzem fórmulas para sintonizar na tendência do momento —seja ela replicar o estilo dos estúdios Ghibli, seja qualquer outra.
Se é verdade que toda arte pressupõe alguma tecnologia, é preciso compreender que algumas formas de geração artística têm a tecnologia uma vez que seu campo crítico e zona de produção de outras estéticas. E essas artes, pelo menos desde a disseminação das imagens técnicas, uma vez que chamou Vilém Flusser, tensionam as relações do monopólio do ser humano sobre a geração artística.
A lucidez sintético, principalmente as plataformas de produção com IA generativa, todas concentradas em grandes corporações, envolve debates éticos que precisam ser feitos, mas à luz do século 21, não do século 19. Essa discussão remete à demanda pela fenda dos “datasets” que criam os modelos de lucidez sintético, os regimes de trabalho e exploração para o desenvolvimento dos modelos, além do impacto ambiental que é mobilizado no processamento dessas tecnologias.
Em síntese, remete à produção social dos dados que movem a indústria da lucidez sintético e explicam seus vieses muitas vezes racistas, misóginos e etaristas. Paradoxalmente, no entanto, quem está fazendo essa sátira são justamente os artistas que criam suas obras com a lucidez sintético.
É preciso lembrar, conforme escreveu o filósofo Boris Groys, que “o exemplo predilecto de Arthur Danto, quando argumenta que a arte atingiu o termo de sua história há qualquer tempo, são as ‘Brillo Boxes’ feitas por Andy Warhol”. Todavia, são essas mesmas caixas de sabão que nos obrigam a olhar para o que parece trivial —e escutar nelas os seus mecanismos e o soído dos seus diversos sistemas sobrepostos.
É uma vez que diz uma das músicas do Velvet Underground —margem de rock que ensaiava na Factory e da qual Warhol foi um mentor artístico—, “I’ll Be Your Mirror”, ou eu serei o seu espelho, em português. A frase poderia ser uma das tantas que ele celebrizou. Em tempos em que a geração é automatizada e a visibilidade se mede em dados, Andy Warhol segue nos questionando. De dentro da máquina —ou do fundo do espelho.