Anna Muylaert está passando por uma situação considerada inusitada para qualquer cineasta brasílico. Num país em que até os nomes mais consagrados podem levar anos entre um projeto e outro, a diretora paulistana terá, no final de 2024, três longas-metragens rodados em unicamente três anos.
Em 2022, dirigiu “O Clube das Mulheres de Negócios”, atualmente em período de finalização. As filmagens de “A Melhor Mãe do Mundo” terminaram pouco antes do Natal do ano pretérito. Neste ano, Anna deve fazer “Geni e o Zepelim”, fundamentado na melodia de Chico Buarque.
Esta período também marca uma ampliação de seu universo temático. Anna Muylaert ficou conhecida por filmes que revelam as mazelas da classe média, uma vez que “Durval Discos” (2002) e “É Proibido Fumar” (2009). Em 2015, “Que Horas Ela Volta?” trouxe sua primeira protagonista de classe baixa, a empregada vivida por Regina Casé. Agora, com “A Melhor Mãe do Mundo”, a diretora faz seu primeiro longa totalmente ambientado em bairros pobres de São Paulo.
“Em 2019, eu escrevi um projeto de série com histórias de mães de vários lugares do Brasil”, conta ela, em entrevista à pilar por videoconferência. “A série não foi adiante, mas a Galeria Distribuidora se interessou por uma das histórias. ‘A Melhor Mãe’ é o meu primeiro filme feito sem edital, sem Fundo Setorial [do Audiovisual, o FSA, vinculado ao Ministério da Cultura], logo todo o processo andou mais rápido.”
“Também é o filme mais difícil que eu já fiz. Porque é a história de uma mãe carroceira que sofre injúria do marido. Ela, logo, decide largá-lo e ir com os filhos para a moradia de uma prima. Sai do Glicério [na região central de São Paulo] e vai para Itaquera [no extremo leste da cidade]. Logo é um filme de rua. É um road movie de carroça.”
Quase todas as cenas de “A Melhor Mãe do Mundo” são externas. “Estávamos expostos às intempéries. À chuva, ao sol. Teve cena em que começou a chover no meio e precisamos filmar de novo, porque não dá para fazer uma secção no sol e outra secção na chuva. Enfim, um filme difícil. Mas que está dando muito notório.”
Um complicador a mais eram os atores-mirins. “A moçoila de 11 anos foi feita pela Rihanna Barbosa, praticamente uma profissional. Ela já fez série, trabalha bastante e é muito responsável, no nível de um adulto. Quer ser atriz, e vai ser.”
“O menino é o Benin Ayo, que tem cinco anos de idade e já é um influenciador, com mais de 200 milénio seguidores no Instagram. Ele já tem todo um traquejo com a câmera. Mas, sim, no primeiro dia eu achei que estava frita. Ele não queria, ele virava a face. E eu falei: ‘Olha, se você não quiser fazer, me fala agora. Porque daí você vai embora para moradia e a gente arranja outro. Mas se você quiser, vamos fazer’. Ele olhou no olho, e nunca mais [apresentou resistência].”
“No final, ele perguntava: ‘Quantos dias faltam para finalizar?’. E chorava quando a gente dizia. Ele não queria que acabasse. Com cinco anos de idade, ele sacou o jogo do ator. Sacou que tem um texto, mas que ele pode ir além. É um menino impressionante. Outro dia ele gravou um vídeo para as redes em que diz: ‘Eu tô sumido porque o pai tá trabalhando’. O ‘pai’ é ele mesmo”, conta Anna, aos risos.
A atriz principal de “A Melhor Mãe do Mundo” é Shirley Cruz, com quem a diretora já havia trabalhado na série “Filhos do Carnaval” (HBO), da qual foi roteirista, e no filme “O Clube das Mulheres de Negócios”. “Sempre achei a Shirley muito interessante, e ela fez um teste incrível para esse papel.”
A trama do filme foi inspirada em duas carroceiras da vida real, Fabiana e Loura, que carregam os filhos em suas carroças. “A partir dessa imagem, eu criei uma ficção para falar de injúria. E também da maternidade e da função de mãe.”
“Fui saber a Fabiana na Cooperativa do Glicério, em 2019. Elas ganham um teto supra do salário mínimo. Ainda é bastante pobreza, mas num nível de distinção. Fui à moradia dela e acabamos ficando amigas. Mantivemos contato durante toda a quarentena.”
“Agora, voltei a esse mundo onde nunca vivi, mas onde consegui me permear. E fui levando minha equipe inteira para saber também. Cada um que eu levava, avisava: ‘Se prepara’. Porque as pessoas têm uma expectativa do que vão ver na ‘economia do lixo’, e o que elas encontram lá é o contrário: uma força humana de superação. Todo mundo sai com a sensação de que conheceu rainhas.”
A maternidade é um matéria recorrente nos filmes de Anna Muylaert. Presente desde seu longa de estreia, “Durval Discos”, até o mais publicado, “Que Horas Ela Volta?”.
“A mãe é uma força da natureza. E quando você fala de mãe, já está falando de alguém mais alguém. É um personagem mais uma relação.” Anna tem dois filhos adultos: José, de 29, e Joaquim, de 24, que ainda mora com ela.
Ao contrário de muitos de seus colegas, Anna só usa preparadores de elenco com os atores-mirins. O elenco adulto, prefere encaminhar ela mesma. “A relação entre diretor e ator é uma das mais loucas que existem. Os dois ocupam o mesmo espaço: um é a espírito, o outro é o corpo. É um embate que precisa de muita crédito mútua.”
Agora, Anna se dedica à montagem de “A Melhor Mãe do Mundo”. “Adoro: tem endereço fixo, tem horário”, ri ela. “É onde eu me realizo. A filmagem é a caçada. A montagem é culinária: você já caçou o bicho, e agora pode testar.”
“Filmagem é sempre complicado. Cada diária custa muito custoso. Você tem 12 horas para rodar um notório número de cenas. E isso diante de umas 150 pessoas. Qual pintor que pinta um quadro com 150 pessoas olhando?”
Em 2015, “Que Horas Ela Volta?” foi escolhido para simbolizar o Brasil na disputa pelo Oscar de melhor filme em língua estrangeira. “Fazia 30 anos que um longa dirigido por uma mulher não era o indicado pelo Brasil.” O último havia sido “A Hora da Estrela”, de Suzana Amaral, em 1986.
“Eu senti muita pressão por ser mulher, por estar em um papel de relevância sendo mulher. As assessoras de prelo americanas são todas muito feministas, muito cientes do que chamam de ‘crystal ceiling’ [teto de cristal], do qual uma mulher dificilmente passa. Se passar, corre transe.”
“Quando uma mulher se torna protagonista, fica mais passível de violência do que se ficasse em seu cantinho cozinhando. É uma lógica que só entendi quando aconteceu comigo. Quando um varão faz sucesso, muitas portas se abrem. Mas uma mulher, se faz sucesso, muitas portas se fecham.”
Logo depois estourou o movimento #MeToo, com mulheres denunciando assédios e mandando homens poderosos para a enxovia, uma vez que o ex-super agente Harvey Weinstein. A Liceu de Hollywood também decidiu ter mais variação entre seus membros, com mais mulheres e mais profissionais estrangeiros. Anna estava na primeira leva de 600 convidados.
“Isso mudou o resultado do Oscar. Já em 2018 ganhou ‘Moonlight’, tal qual protagonista é preto e gay. Em 2019, ganhou o sul-coreano ‘Sevandija’. O Oscar precisava se modernizar, e eu acho que está conseguindo.”
Anna já se prepara para rodar “Geni e o Zepelim” no Acre. Quer fazer uma confrontação entre o corpo da protagonista, que será uma mulher trans, com o “corpo” da floresta amazônica, ambos vítimas de violações.
Anna Muylaert adoraria não ter que filmar zero em 2025. “O ritmo ideal é de uma filmagem a cada dois anos”, diz. Mas esse libido talvez não se realize. Ela analisa uma proposta de refilmar “Que Horas Ela Volta?” nos EUA. Com algumas adaptações no roteiro, evidente: a empregada, por exemplo, será uma imigrante filipina.
Porquê membro da Liceu, Anna tem chegada online a centenas de filmes que disputam as indicações. Isso fez com que seu hábito de ir ao cinema diminuísse mais ainda. A moçoila que, aos 14 anos de idade, encarava uma hora de ônibus para chegar ao cine Bijou, no núcleo de São Paulo, hoje só vai ver um filme na telona se for, por exemplo, um vencedor do Festival de Cannes, ou de um cineasta que ela admire, uma vez que Kleber Mendonça Rebento.
“Não é por culpa da minha idade [Anna completa 60 anos em abril]. Meus filhos também não têm o hábito de ir ao cinema. Mas consomem audiovisual o dia inteiro, em tablets ou celulares.”
Um traje que a abalou foi o suicídio presenciado de Jean-Luc Goddard, em 2022. “Numa era em que chove filme nas nossas cabeças e a gente não vai ver quase nenhum, o Godard se mata? Para mim, isso tem um valor simbólico.”