O ronco das motosserras se transforma em exposição metálico abstrato. Nas paredes da galeria, são linhas escuras de pequenos pontos irregulares, duras reticências que são na verdade a tradução visual ilegível de discursos de políticos em resguardo do progresso da boiada para cima da floresta, registrado com os sobras de lâminas que dilaceram a Amazônia recolhidos pelo artista.
Esse minimalismo duro e de certa forma elegante da obra do brasílio Frederico Filippi, que abria uma das alas da feira Roda, recém-encerrada em Madri, esconde um mundo em chamas, e não só no pulmão do planeta.
Vemos tudo pegar incêndio da perspectiva de uma Europa à deriva, abandonada pelos Estados Unidos de Donald Trump, vizinha de duas guerras em escalada brutal, na Ucrânia e na Fita de Gaza, e sequestrada pelo progresso da extrema direita em todo o planeta e, ainda mais, dentro de lar, o que põe em risco décadas de um estado de bem-estar social e do protótipo político que o sustentou desde o termo da Segunda Guerra.
O colapso, os artistas nem precisam expressar, está em curso. Num evidente meneamento da Roda ao mercado latino-americano e à subida do trabalho de artistas indígenas na cena contemporânea, o pulmão da feira eram as peças reunidas pelo brasílio Denilson Baniwa e pela colombiana María Wills Londoño, apresentadas porquê “ideias para um ‘amazofuturismo’”.
De vestuário, se há espaço para as motosserras desconstruídas de Filippi, há também para visões mais híbridas da floresta, não só de sua ruína captada com fulgor por artistas porquê Claudia Andujar, com enorme destaque nesta Roda, mas a teoria de uma Amazônia símbolo de uma cosmogonia transnacional e compartilhada, envolvente avoengo e pilar de um modo de vida em extinção.
É o caso tanto de clássicos, porquê as montagens fotográficas de Anna Bella Geiger, que tensionam a relação entre brancos e indígenas ao longo da história brasileira, porquê de obras novíssimas, entre elas o retrato da entidade encarnada por Uýra numa de suas performances fotografadas, ou nas pinturas que imaginam fusões de homens com bichos, de Daiara Tukano.
Muitos dos nomes nessa Amazônia espanhola, aliás, são figuras repetidas das últimas edições da Bienal de Veneza, na Itália, e da Bienal de São Paulo, atestando que não só esses artistas foram abraçados com interesse pelo volta mas agora parecem estar em subida irrefreável no mercado —e a Roda luta por isso com força, na tentativa de voltar a ser o farol que era para a arte latino-americana frente ao gigantismo de sua maior rival, a Art Basel Miami Beach, nos Estados Unidos.
Os mercados, o daquele movido a dólares num quase paraíso fiscal perto dos altos impostos praticados em euros na Espanha, são diferentes, e as vendas na Roda, afirmam os galeristas, acontecem noutro ritmo e em patamares de valores muito menores.
Isso não impediu que algumas transações de vulto ocorressem, porquê a venda de uma obra de Adriana Varejão pela paulistana Fortes D’Aloia & Gabriel por R$ 2,6 milhões e outra, de Janaina Tschäpe, na mesma lar, por R$ 810 milénio.
A Gomide&Co, também de São Paulo, vendeu nove trabalhos do prateado León Ferrari, cada um na filete dos R$ 130 milénio, e a Entupido, de Goiânia, vendeu cinco obras de Dalton Paula, com valores entre R$ 90 milénio e R$ 350 milénio.
Vendas à segmento, o saldo parece ser agora uma visível depuração de certas linguagens, nem tanto o imediatismo dos trabalhos antes vistos porquê primitivos por colecionadores tentando digerir uma novidade sintaxe, mas agora também obras mais muito acabadas, uma espécie de paixão à superfície plástica. Não escondem urgências políticas que são sua força, mas não se rendem ao panfletarismo raso.
Essa potência encontrada em obras de grande apelo visual foi um denominador geral de uma feira politizada também em outras frentes. Estava no geometrismo sintético da libanesa Etel Adnan, na Lelong, de Paris e Novidade York, um clássico que não deixa de aprazer, e no traço duro e preciso da portuguesa Helena Almeida, na Francisco Fino, de Lisboa.
Na mesma galeria, Vivian Caccuri traduzia os ruídos do mundo num bordado que representa ondas sonoras dissonantes, graves e agudos da cacofonia atual.
Uma fitologia às avessas, não mais o revérbero de florestas reais e mais um espelho de um mundo réprobo à morte pela mudança climática, apareceu nos trabalhos do guatemalteco Naufus Ramírez-Figueroa, na Proyectos Ultravioleta, da Cidade da Guatemala, e de Vik Muniz, na Polígrafa Obra Gráfica, de Barcelona.
O primeiro construiu rígidos painéis em que a ramaria superabundante da mata parece estilhaçada, porquê vidro trincado, e o segundo montou uma enorme galeria de desenhos e flores artificiais à tendência das antigas ilustrações científicas.
O contraste entre terreno e vidro, originário e construído, também atravessa uma peça potente do prateado Gabriel Chaile, um pintura de greda que lembra terreno arrasada pela brasa, na ChertLüdde, de Berlim, o cavalete de Lina Bo Bardi estilhaçado pelo espanhol Daniel Steegmann Mangrané, na também berlinense Esther Schipper, as flores de caules metálicos e pétalas bordadas da espanhola Leonor Serrano Rivas, na Carlier Gebauer, de Madri, e as paisagens geométricas construídas por azulejos pela canadense Kapwani Kiwanga, na Poggi, de Paris.
Mas nem tudo é tão sutil. Se há uma repleção de azulejos, tijolos e vitrais abstratos, um sabido polemista espanhol decidiu transformar em pratos os grandes rostos da extrema direita global. Eugenio Merino, na galeria ADN, de Barcelona, estampou as feições de Donald Trump, Elon Musk, Javier Milei e Jair Bolsonaro, para lembrar só alguns, num aparelho de jantar e enfiou tudo numa lava-louças. É verosímil rir da desgraça, mas parece difícil extinguir as chamas do planeta com um aparelho doméstico.
O jornalista viajou a invitação da Roda.