Uma vez por semana, grupos de aposentados da Argentina têm mantido um ritual: eles se reúnem em frente ao Congresso, no meio de Buenos Aires, para reclamar contra as perdas geradas pelo projecto de ajuste do governo de Javier Milei. Mas aquela não seria uma quarta-feira uma vez que as outras.
Em 12 março, argumentando que torcidas organizadas de clubes de futebol do país se articularam para substanciar a marcha e que torcedores atiraram pedras e outros objetos contra as forças de segurança, o governo reprimiu a sintoma com gás, balas de borracha e caminhões-pipa para dissiminar a povaréu.
Nos dias seguintes, as autoridades proibiram a ingressão em estádios de 26 torcedores que participaram dos protestos, chegou a oferecer uma recompensa equivalente a R$ 55 milénio para que fossem identificadas mais pessoas e atribuiu o aumento da repressão à presença de barras bravas.
Barras bravas são grupos organizados de torcedores, que ficaram conhecidos por episódios violentos. São semelhantes aos hooligans e ultras de outros países. Assim uma vez que as torcidas organizadas representam uma secção dos fãs do clube, as barras representam uma secção das organizadas.
Há semelhanças com as torcidas jovens do Brasil, explica o sociólogo e antropólogo prateado Nicolas Cabrera, fundador e pesquisador do Observatório Social do Futebol, da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
“São grupos muito organizados, com jerarquia, subdivisão de trabalho, e que operam sempre ao volta de um clube. A maioria é de homens que vêm de setores populares e da classe média, com uma ideologia muitas vezes homofóbica, onde a mulher também não tem lugar e que valoriza a masculinidade agressiva.”
Nos estádios argentinos, eles puxam os cantos, levam as baterias e recebem os jogadores antes das partidas. E também, uma vez que outras torcidas organizadas, viajam pelo país e internacionalmente em caravanas, recebendo para isso ajuda financeira dos clubes e, em alguns casos, de jogadores.
“Elas não têm CNPJ, não têm um reconhecimento jurídico. Logo, é uma vez que se não existissem, mas existem”, diz Cabrera. Até por isso, é difícil prezar o número de componentes de uma barra, e mesmo os líderes de alguns desses grupos só passaram a se assumir com representantes dessas torcidas mais recentemente, com a popularização das redes sociais.
Os nomes das torcidas também carregam simbolismo. É uma vez que se os integrantes da “La 12” fossem o 12º jogador em campo nas partidas do Boca Juniors, enquanto os “Borrachos del Tablón”, do River, fazem referência aos “tablones de cancha”, as arquibancadas de madeira que existiam nos estádios.
Historicamente, as barras têm uma possante relação territorial e acabam influenciando a política nos bairros e cidades ao volta dos clubes. Em alguns casos, colaboram com políticos em troca de serviços de segurança ou esteio, explica o professor José Garriga Zucal, da Universidade Vernáculo de San Martín.
“Mesmo para os maiores clubes, o território é uma dimensão mediano quando se pensa no futebol prateado. Para dar um exemplo, se você quisesse se envolver na política em San Martín, onde o Chacarita Juniors é um clube muito importante, seria difícil não ter alguma relação com alguém da barra.”
Principalmente nas primeiras décadas depois a redemocratização da Argentina, em 1983, era geral que políticos locais requisitassem esteio das barras para eventos de campanhas nas proximidades dos estádios, pagassem um integrante para vigiar muros pintados com a propaganda do candidato ou que pedissem aos chefes das torcidas que enchessem ônibus para aumentar o público em comícios.
Nos últimos anos, essas relações foram mudando, embora em áreas de maior peso do peronismo, uma vez que as cidades da Grande Buenos Aires, a proximidade da torcida com esse grupo se mantenha possante. Com os grupos mais ligados a um determinado sindicato, acontece o mesmo.
Já na política interna dos clubes, a influência de barras bravas se transformou ao longo dos anos, mas elas ainda têm um papel significativo.
“Não há um clube prateado em que as barras não tenham força. Elas regulam o clima e os humores, e também sempre há a prenúncio latente da violência”, acrescenta Zucal, que é responsável de diferentes livros sobre a relação das torcidas de futebol na Argentina com a violência, uma vez que “La Era del Aguante – Barras, Hinchas, Violencias y Muerte en el Fútbol Prateado” (ed. Planeta; R$ 137; 176 págs.).
É importante lembrar que integrantes de barras são sócios dos clubes e, portanto, têm recta a opinar e a fazer mobilizações, diz Cabrera, que é responsável de “Que la Cuenten uma vez que Quieran – Pelear, Viajar y Confortar en una Barra del Fútbol Prateado” (ed. Prometeo; R$ 143; 354 págs.).
Com a chegada de Milei ao poder, em 2023, seu projeto ultraliberal não poupou o mundo do futebol. O presidente chegou a tentar transformar por decreto os clubes em SAFs (Sociedades Anônimas do Futebol). A investida foi barrada na Justiça, depois um pedido da AFA (Federação Argentina de Futebol), mas o governo não desistiu.
Para Zucal, as barras não se opõem necessariamente às sociedades anônimas no futebol. De contrato com ele, as torcidas organizadas violentas estão mais interessadas em negócios informais, uma vez que os serviços de estacionamento e venda de produtos em volta dos estádios.
Por isso, os dois pesquisadores afirmam que a participação de torcedores na marcha dos aposentados não envolve os primeiros escalões de barras, mas sim torcedores organizados não violentos ou integrantes sem peso político.
“Pode ser que qualquer componente de uma, duas ou três barras tenha comparecido aos protestos. Mas as barras são estruturas totalmente organizadas e hierárquicas. Se a liderança fala ‘vamos’, um monte de gente vai para a rua com faixas, com camisas, para mostrar força. Isso não aconteceu”, diz Cabrera.
Zucal concorda que a sintoma dos aposentados não contou com barras bravas, ao menos não com integrantes do topo da jerarquia nas torcidas. “Se qualquer estava lá, era minoria. O governo difundiu que o vandalismo foi causado por barras exclusivamente para estigmatizar e deslegitimar a reivindicação.”
Em seguida o incidente na marcha, a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, apresentou um projeto de “lei antibarras”, em que as torcidas seriam consideradas associações ilegais, seus líderes seriam investigados, e os clubes, penalizados.
“Há muito tempo a Argentina precisa resolver um problema estrutural envolvendo as barras no futebol”, disse a ministra, que já tinha tentado alguma coisa parecido quando fez secção do governo de Mauricio Macri (2015-2019).
Procurado pela Folha para se manifestar sobre os desdobramentos das investigações a reverência da presença de barras no protesto dos aposentados, o Ministério da Segurança não respondeu.
Conheça algumas das torcidas mais importantes da Argentina
. La 12
Time: Boca Juniors
Instauração: 1969
Principal líder: Rafael Di Zeo
Percentual de torcedores do clube*: 29%
. Los Borrachos del Tablón
Time: River Plate
Instauração: 1975
Principal líder: Ariel Calvici
Percentual de torcedores do clube*: 26%
. La Barra del Rojo
Time: Independiente
Instauração: Dez de 1950
Principal líder: “Bebote” Álvarez
Percentual de torcedores do clube*: 5%
. La Guardia Imperial
Time: Racing
Instauração: 1958
Principal líder: Matías Alfonzo
Percentual de torcedores do clube*: 5%
. La Butteler
Time: San Lorenzo
Instauração: 1959
Principal líder: Cristian Evangelista
Percentual de torcedores do clube*: 5%
*Percentual de argentinos que torcem para o clube, integrantes ou não de organizadas, de contrato com o levantamento “Radiografia do Torcedor de Futebol Prateado”, de 2021, da Kantar
Fontes: Kantar e Barrabrava.net