Arnaldo antunes canta mundo urgente em novo álbum 19/03/2025

Arnaldo Antunes canta mundo urgente em novo álbum – 19/03/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Nos loucos anos 1980, Arnaldo Antunes, ainda integrante dos Titãs, convidou Haroldo de Campos para transpor em turnê, viajando no ônibus da filarmónica. Findo um dos shows, o poeta concreto se viu rodeado por jovens descamisados, que mais pareciam um time de rúgbi, entoando cantigas para festejar o visitante erudito. Em oferecido momento, Haroldo não resistiu à tentação de teorizar o que acabara de ver em cena. Disse que, em oposição à coreografia mais placentária do vocalista Branco Mello, a performance de Antunes se assemelhava à estrutura cubista, porque sua movimentação engendrava, no espaço vazio, ângulos, vértices e arestas.

O tempo passou, mas a dança é a mesma. Aos 64 anos, Antunes cultiva uma postura combativa para enfrentar os desafios do novo século. Com socos, cotoveladas e pontapés, ele escancara o “Novo Mundo”, novo disco de sua curso solo, que chega nesta quinta-feira (20) às plataformas digitais. “Acho que minha dança pode ter, sim, relação com a termo escrita, mas isso é involuntário. Faço aquilo com espontaneidade, não é uma coreografia pensada”, diz ele, numa entrevista por videoconferência, enquanto reproduz, do outro lado da tela, a sua coreografia.

Sabido pelo trânsito livre entre as artes, da performance à música, Antunes é, antes de tudo, um poeta, tendo encontrado na termo escrita seu lugar existencial. Herdeiro do concretismo na MPB, ele explora a linguagem “verbivocovisual”, isto é, a dimensão verbal, vocal e visual da termo, podendo ocupar diferentes funções, incluindo a de cantor e compositor.

Os primeiros meses deste ano, no entanto, trouxeram a ele más notícias. O pilha de seu colega, Haroldo, foi removido da Moradia das Rosas, instituição vinculada ao governo do estado de São Paulo, e está agora inacessível aos pesquisadores, trancado em um repositório em Barueri, a 30 quilômetros da capital paulista.

“É uma indignação enorme, um descaso. O pilha foi para um porto que era para ser seguro, e o valor daquilo é imenso para a cultura brasileira. Foi um baque. Acho que as autoridades que tomaram essa decisão tiveram um incúria imperdoável e isso precisa ser revisto”, afirma Antunes. De todo modo, o diálogo que mantém com a tradição deve servir para elucidar o presente e imaginar futuros possíveis.

Não por eventualidade, as canções do novo álbum se relacionam em um contexto de urgências. Na tira de introdução, que nomeia o disco, Antunes tematiza a ensejo de guerras, de emergência climática e a desumanização, causada pelo progresso tecnológico. “Cada vez mais plástico e menos chuva/ Cada vez mais casca e menos substância/ O veneno exclusivamente fortalece a praga/ E a nau da insensatez sem freio avança.”

Antunes diz que a preservação ambiental voltou à taxa no governo Lula, do PT, mas os esforços políticos para o desenvolvimento sustentável ainda são insuficientes. “O Brasil caminha a passos lentos, existe um Congresso muito conservador, existem forças muito reacionárias administrando essa questão”, afirma.

Ao fundo, ouvimos as batidas eletrônicas de Pupillo, o produtor do disco, que imprime uma compasso semelhante à do hip-hop. À guisa de um manifesto, o esteio sonoro do longo poema desemboca numa mediação do rapper baiano Vandal, que alerta para os impactos da perceptibilidade sintético no mercado de trabalho.

No silêncio da página, o protesto de Vandal ganha uma forma gráfica específica, com letras maiúsculas e a letra “H”, substituindo os acentos agudos. É quase código Morse. “Não é uma sátira à perceptibilidade sintético em si. É uma sátira ao mundo, à maneira uma vez que esse instrumento é utilizado nas comunicações”, diz Antunes, acrescentando que não tem vontade de usar a utensílio para conceber. Segundo ele, as soluções apresentadas pela tecnologia são, quase sempre, clichês.

“Quando surgiu a internet, eu tinha uma visão muito ilusória do que realmente ela veio a se tornar. Achava que a informação instantânea facilitaria o convívio com as diferenças, mas fomos percebendo um acirramento de guetos, e o algoritmo incentivando a extrema direita.”

Sob uma perspectiva circundar, o álbum termina com “Tanta Pressa pra Quê?”, parceria de Antunes com sua mulher, Márcia Xavier, que denuncia a aceleração do mundo com a internet. “Todo mundo tem opinião o tempo todo/ pare o mundo que quero descer”, diz a letra. No refrão, os solos de Kiko Dinucci se assemelham à guitarrada paraense.

Entre as 12 faixas de “Novo Mundo”, algumas participações se destacam. A cantora Ana Frango Elétrico entoa o iê-iê-iê “Pra Não Falar Mal”, em que o compositor brinca com a rima anasalada “ninguém” e “alguém”, explorando o polo positivo e o negativo, temática zen budista tão presente em sua poética. Não à toa, a letra cita o livro “Tao-Te King”, atribuído a Lao Tzu, que inspirou o budismo e o taoísmo.

Já o americano David Byrne, fundador da filarmónica Talking Heads, é parceiro de Antunes nas duas faixas que divide os vocais —”Não Dá para Permanecer Parado Aí na Porta” e “Body Corpo”, ambas cantadas em inglês e em português, constituindo duas camadas linguísticas. Em privado, “Body Corpo” responde à desumanização tematizando a corporalidade, objecto tão em voga na trova contemporânea.

“Novo Mundo”, em suma, não configura uma distopia, mas expõe a verdade tal uma vez que se apresenta hoje. Apesar dos desafios, “Sou Só”, que Antunes escreveu e agora canta com Marisa Monte, deixa um sentimento de esperança no ar. Ele diz que os famosos duetos com a soprano, entoados em oitavas diferentes, o ajudaram a estabelecer o registro grave e nasal uma vez que sua singularidade.

De vestimenta, é verosímil observar duas tendências na curso solo do artista. Nos quatro primeiros discos, Antunes ainda curte o barato concreto com a crueza do rock. Depois dos Tribalistas, grupo que integra com Monte e Carlinhos Brown, ele é menos punk e mais hippie, uma poética nostálgica com o olhar virgem da velha puerícia.

Porém, Antunes, que participou da megaturnê dos Titãs no ano pretérito, não concorda que o rock tenha morrido. “O rock se tornou mais uma questão de comportamento do que gênero músico”, diz. “A gente ficou muito surpreso, durante a turnê, que os temas da filarmónica continuam atuais.”

Foi a experiência com a sua antiga filarmónica que lhe motivou a fazer o novo disco, com o som pesado de “Tire o Seu Pretérito da Frente”, um recado à sanha canceladora das redes sociais. “Não é porque foi oprimido que vai virar opressor/ não é porque foi abusado que vai ser abusador/ não é porque ficou fodido que vai perder a fé”, diz a letra, pontuada pelo sintetizador de Vitor Araújo. Nos últimos segundos, a melodia muda, e ouvimos Antunes testar a sua voz, em gritos, grunhidos e gemidos guturais, um recurso vocal análogo aos vértices, ângulos e arestas de sua coreografia no espaço vazio.

Instado a comentar a letra, o compositor tergiversa. “Não tem muito o que explicar, mas tem essa forma individual de algumas pessoas reproduzirem o que sofreram no pretérito”, afirma. Porquê sua arte tem matriz formalista, ele se dá ao luxo de expor “a cantiga fala por si”.

Em paralelo à música, o responsável de “Um pouco Macróbio” começa a redigir poemas para um novo livro. Ele também acaba de participar do documentário “Artéria: Verso em Revista”, dirigido por Bruna Callegari, sobre o mais longevo periódico devotado ao gênero literário, de que foi colaborador.

“A trova ficou mais pop com as revistas, elas propiciavam a geração gráfica. Acho que a tradição das revistas ainda faz falta”, afirma. Ele acredita que ainda há sentido em suprimir o verso hoje. Criando poemas visuais, ele pensa responder às novidades da tecnologia.

Dinamitando a linguagem em sua dimensão “verbivocovisual”, Antunes alcança a frase da forma. Por fim, responder “a cantiga fala por si” não deixa de ser uma maneira mais intelectualizada de ulular, uma vez que naquela sua famosa música: “Porrada! Porrada! Porrada!”.

Folha

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