J. Borges, o maior xilogravurista brasiliano, poeta e cordelista, morreu em sua cidade natal, Bezerros, em Pernambuco, nesta sexta-feira, aos 88 anos. O Brasil se despede de um artista grandioso que encantou milhares de pessoas e que aprofundou a visão de todo o país sobre o Nordeste e a vida sertaneja —seus pássaros, sua formosura, suas cores e geografia, a perspicácia de seu povo, seus dramas e universo fantástico.
Tratou dos mais diversos temas: paixão, morte, mistérios e fantasias. De fazer o povo rir, de safadezas, de falta de honestidade na política, dor de corno, profecias uma vez que termo de mundo, termo de século, penúria, peste, guerras. Com Luiz Gonzaga, talvez tenha sido o mais importante narrador contemporâneo da veras nordestina.
O artista construiu sua vida a partir de intensa reparo do vivido e sem desviar da veras, por mais brutal que fosse. Nascido na zona rústico, viveu os dramas de muitas famílias, trabalhando desde garoto na lavoura. Estudou exclusivamente um ano, quando aprendeu a ler e redigir. Teve uma longa vida de trabalho, que só terminou com ele. Dias antes de sua morte, tinha iniciado uma xilogravura.
Desde a puerícia, tomou contato com a literatura de cordel. E, dali para a frente, mesmo com outras profissões —uma vez que pedreiro e marceneiro—, sua imaginação despertou para a magia trazida pelas narrativas. A paixão o levou a vender e a relatar em voz subida nas férias de Bezerros e periferia, uma vez que era prática, as histórias de outros criadores, até que um dia começou a produzir as suas.
Entusiasmado pelas performances entusiasmadas dos escritores populares, pela encenação do que um dia chamou de “teatro do áspero e do sertão”, fez do trabalho, de qualquer forma de trabalho, um duelo e uma alegria, tal qual os personagens de suas criações.
Completamente fascinado pelas aventuras, disputas e mistérios que estruturam as narrativas de cordel, encontrou nessa forma de literatura um potente paralelo com sua própria vida. Uma vida de lutas e desafios contínuos, onde a sobrevivência ocupa lugar mediano.
Se, por um lado, podemos ver sua intensa produção uma vez que resultado desse entendimento da vida uma vez que luta sem termo, por outro vemos que sua obra amplia os sentidos da teoria de luta, para além das contendas e dos conflitos.
Não que eles inexistam. Ao contrário, foram inspirações de muitas histórias. Mas Borges parece nunca ter desviado dos problemas, fazendo deles fomento para o encontro de soluções. Sua primeira xilogravura, por exemplo, nasce da dificuldade em obter matrizes para as capas de suas histórias.
Seu mergulho nesse universo criativo nos faz refletir sobre uma vez que a inspiração pode estar relacionada, visceralmente, também à questão de sobrevivência: sempre foi um grande instituidor, referto de imaginação e talento.
Mas a falta de verba, a urgência de nutrir os numerosos filhos —18 próprios e seis adotados—, os pedidos e desafios propostos pelos “clientes”, o levaram a explorar qualquer tipo de tema sem perder suas características próprias. A tudo encarou com robustez inusitada.
Suas gravuras impressionaram Ariano Suassuna, que se tornou um grande divulgador de sua produção e o chamou de melhor gravador popular do Nordeste. Esse encontro foi fundamental na vida do artista, pois despertou o interesse pátrio e internacional por sua obra.
Viajou para mais de 15 países, fez exposições e deu aulas. Em 2000, expôs no Louvre, em Paris, e em 2002, foi destaque no New York Times. Com Eduardo Galeano trabalhou por quase dois anos, quando ilustrou um livro, a partir das narrativas do plumitivo uruguaio.
Ilustrou um raconto de José Saramago. Sua gravura da Sagrada Família foi presenteada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao papa Francisco, em 2023. E, em 29 de junho, inaugurou no Museu do Pontal sua mais extensa retrospectiva, com 200 obras, contando um pouco da sua trajetória de 60 anos de produção artística.
Recebia os estudantes e os turistas em seu ateliê, falando sobre a relevância de buscar a felicidade, e, com isso, não era piegas. Exclusivamente queria transmitir sua experiência de varão pleno, dos quais trabalho deu sentido à própria vida. Refletiu lindamente sobre a arte: “O sentido do artista é a geração. Paladar muito da liberdade de trabalhar criando o que me satisfaz. A arte dá liberdade ao pensamento humano, alimenta o espírito.”
Tomar contato com a produção de J. Borges é entrar na dimensão fantástica da imaginação, com toda sua dificuldade e singeleza. Borges apresenta o seu mundo vivido, ladino, observado. Sua obra pautou o imaginário brasiliano sobre xilogravura.
Quando pensamos sobre essa arte milenar, nos vêm à mente as criações de J. Borges. Esse Sol do sertão, que nunca se apagará.