Um pequeno forte resiste às intempéries em uma praia de areia dura onde a névoa encobre a paisagem. Uma evocação ao siroco mediterrâneo, outrora cenário da literatura e do cinema, porquê no longa “Morte em Veneza”, de Luchino Visconti, em que a tempestade lançada das areias do Saara anunciava a temporada de peste e desilusão.
A construção perene da obra “A Vaga” não é propriedade de nossos tempos hiperconectados. Pertence a um pequeno mundo idoso e habita o imaginário do pintor Lucas Rubly, 33, que ganha sua primeira individual “A Cor do Sonho de Ontem” na galeria Verve. Entre os temas tocados, estão a valorização da memória para a compreensão do presente e a impossibilidade do retorno em um mundo colérico.
A melancolia é uma propriedade das atmosferas oníricas criadas por Rubly, onde casebres fincados em montanhas e ruínas à litoral evocam um cenário hostil marcado pela impossibilidade da prosperidade e pelo vazio. “Sou um pintor pleno de medos. Mas acredito que do caos se pode vislumbrar alguma venustidade. Horror e venustidade estão ligados”, diz Rubly.
Ao se deparar com a obra “Vivenda Pintada de Preto”, ele admite que “nem todo abrigo é um lugar seguro”. A representação da frágil fundação remete ao pretérito recente, quando passou por apuros na antiga vivenda onde morava com a família. Designer gráfico de formação, Rubly resolveu se tornar tatuador em meados de 2019, quando investiu em cursos da superfície e planejava penetrar um estúdio.
Mas os planos não vingaram por conta da pandemia de Covid-19, quando o isolamento impôs uma rotina de rígidos cuidados sanitários. Sem clientes, à quadra com 29 anos, em 2021, o jovem pleiteou uma bolsa em um curso de história da arte online e redescobriu uma paixão: a pintura. Com a ajuda da mãe, recortava pequenos quadrados em caixas de papelão que depois eram preparados com goma arábica. Suas primeiras obras foram realizadas neste formato.
“Não tinha quantia para comprar telas e tintas de boa qualidade, portanto recortar o papelão foi o jeito que achei. No primícias, usava só quatro cores. Naquele momento em que a pandemia estava no auge e ninguém sabia o dia de amanhã, a pintura foi a maneira de mourejar com a solidão”, conta o artista.
Sua produção figurativa ganhou destaque em exposições coletivas porquê “Surge et Veni”, na Galeria Millan, e na Vivenda SP-Arte, ambas realizadas no primeiro semestre. Agora, Rubly amplia seu repertório, apresentando também telas abstratas e obras tridimensionais ao lado das paisagens. Ele comenta que as novas composições foram inspiradas pelas fitas VHS digitalizadas e pela retrato analógica, cujas cores, alteradas pelo tempo, revelam cenas de sua puerícia nos anos 1990.
Na obra “Inocência”, ele retrata um sol proeminente e conduz o pincel para além das formas canônicas e muito delineadas da maioria de suas paisagens. Nesta tela, ele dialoga com o rabi Amadeo Luciano Lorenzato, coloca o sol no meio, e experimenta a luz poderosa que emana do planeta. Em outras telas, porquê “Poeira ao sol”, a luz é filtrada, as cenas ganham profundidade com a presença da névoa – chegando até comprar tons soturnos, porquê na natureza morta “Flores vermelhas e brancas”.
“Quero indicar para algumas espécies de violência em minhas obras, quando pinto um vaso com flores, por exemplo, quero colocar em foco a agressão à natureza. O libido do varão de encarcerar a venustidade e tirar da natureza o que a ela pertence”, diz o pintor, que sustenta uma espécie de estética do deserção.
Ao procurar na história da arte respostas para o tempo presente, Rubly realiza uma invasão aos grandes mestres. Recorre às paisagens desconstruídas do americano Richard Diebenkorn e aos recantos luminosos do suíço Felix Vallotton, que, no final da vida, voltou sua atenção para a paisagem de Canha de Mar, no sul da França.
Segundo a curadora Marina Schiesari, que assina também o texto crítico da mostra, “É visível a história da pintura encapsulada em sua tela, absorvendo influências canônicas porquê as de Hopper, na forma, Morandi na paleta, Tuymans na relação com a imagem, Goya no pessimismo”. À lista de influências, pode-se alongar também o lirismo característico dos artistas que fizeram segmento da Escola de Barbizon em meados do século 19.
Uma espécie de tensão imanta as cenas frugais das praias, desertos e jardins presentes no universo do artista. Ao pintar os caminhos criados pela mão do varão no campo, Rubly coloca em segundo projecto a devastação porquê um tanto iminente à lógica do progresso. Seu mundo idílico parece estar pronto para ruir, mas permanece. Porque, ao menos no sonho, as cenas opacas das viagens feitas quando menino pelas estradas da serra da Mantiqueira coexistem com as paisagens dos grandes mestres que admira.
Rubly parece ter percebido que “O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma mulher, um forte, um túmulo”, porquê escreveu Machado de Assis em seu romance “Esaú e Jacó”.
Ele admite que em sua pintura o tempo está suspenso. “Para gerar uma atmosfera em que o silêncio aponta a direção, a permanência”. Porquê um artesão, o paulistano cria em pedaços de madeira e em greda, elege paisagens que dialogam com o universo do italiano Giorgio Morandi, uma de suas referências na pintura a óleo.
Assim porquê Morandi, o jovem confere à pintura uma aura sagrada. Trabalha com a iconografia de pequenos objetos e construções singelas. Porquê um fanático, acorda cedo, prepara tintas, e preza por um envolvente taciturno para gerar. “Na vida, a tragédia é quase sempre iminente. Mas eu me lembro do que o [Henri] Matisse dizia, que a sua fé era na pintura. É a minha fé também”.