Uma parede inteira coberta com os nomes de 1.475 artistas rejeitados pelos nazistas abre a exposição “A Arte ‘Degenerada'”, em papeleta no Museu Picasso, em Paris. Na lista, além do próprio Pablo Picasso, estão mestres porquê Marc Chagall, Georg Grosz, Wassily Kandinsky, Paul Klee, Oskar Kokoschka e Vincent van Gogh.
Procurando um pouco, é provável encontrar dois nomes ligados ao Brasil, Lasar Segall e Ernesto de Fiori. O lituano e o teuto estavam radicados em São Paulo desde 1923 e 1936, respectivamente. Centenas de obras que deixaram na Europa, porém, não escaparam da sanha hitlerista contra as vanguardas da era —cubismo, dadaísmo, expressionismo, surrealismo, entre outras.
“Estávamos em contato com o museu [Lasar Segall] em São Paulo, mas infelizmente, por diferentes razões, não pudemos apresentá-lo em Paris. Segall é uma das figuras importantes dessa história que está sendo redescoberta”, diz o encarregado das coleções do Museu Picasso, Johan Popelard. “A Arte ‘Degenerada'” reúne, até 25 de maio, 59 obras de 38 artistas.
Exposições sobre a arte do pretérito muitas vezes dialogam com o presente. A mostra parisiense ganhou mais relevância devido a ataques recentes à liberdade artística, porquê o desterro de livros em escolas e bibliotecas, no Brasil e nos EUA, medidas de Donald Trump contra a arquitetura moderna em prédios federais e o sucesso do longa “O Brutalista”, sobre um arquiteto modernista que sobrevive ao Imolação.
“A exposição não vem para forçar esse paisagem”, salvaguarda Popelard. “Mas de certa maneira essas ideias estão sempre em circulação, e podem encontrar qualquer repercussão no presente.”
Em 1937, a Alemanha confiscou milhares de obras de museus e colecionadores e organizou uma insólita exposição, que batizou de “A ‘Arte’ Degenerada” —assim mesmo, com arte entre aspas, porque os nazistas queriam enfatizar seu menosprezo. Na mostra atual no Museu Picasso, simbolicamente, quem está entre aspas é o “degenerada”.
A exposição nazista atraiu 2 milhões de visitantes —muitos, provavelmente, apreciadores daqueles “degenerados”— em Munique e outras cidades alemãs e austríacas. Hitler em pessoa a visitou, escoltado de seu ministro da propaganda, Joseph Goebbels.
Muitas das mais de 20 milénio obras apreendidas foram destruídas ou desapareceram, e até hoje estudiosos as procuram mundo afora. “Há um processo permanente de procura e milagres que aparecem de tempos em tempos”, diz Popelard.
Um desses milagres aconteceu há 15 anos, durante escavações para uma risco de metrô em Berlim. Foram encontrados 16 fragmentos de esculturas expostas em Munique em 1937. Quatro deles estão no Museu Picasso.
Da “Prenha” em terracota da escultora alemã Emy Roeder, restou pouco além do rosto de traços estilizados. Mas uma foto do catálogo de “degenerados” permite saber porquê ela era por inteiro.
Não são as únicas peças da exposição com fado rocambolesco. Do próprio Picasso, escopo preferencial dos nazistas por conta de sua notoriedade, destaca-se “Nu Sentado Secando o Pé”, de 1921. Embora quase convencional se comparada a outras obras do gênio espanhol, a figura feminina com mãos e pés deformados atraiu a ira dos alemães, que a apreenderam em 1940, durante a ocupação da França.
O pastel foi renovado em 1944 pela Resistência Francesa, em um assalto a um trem. Hoje, ironicamente, pertence a um museu de Berlim, o Berggruen.
Se foi provável reunir o rico ror da atual exposição, isso se deve em segmento à ganância de Goebbels, que decidiu aproveitar o confisco para encher os cofres do Reich. O tino de museus e colecionadores estrangeiros salvou da devastação obras agora presentes em Paris, porquê o óleo “Paisagem com Chaminé de Fábrica”, de Kandinsky. Em 1941, um o colecionador nova-iorquino Solomon R. Guggenheim o adquiriu em um leilão.
Recortes de jornais apresentados na mostra provam que na era não faltou quem denunciasse a barbárie perpetrada por Hitler, ele mesmo pintor fracassado. “Inaugurando um mau paladar de Estado, Hitler só perpetua uma tradição prussiana”, comentou a revista francesa Voilà em 1937. “O que o diferencia de seus antecessores é a violência dos métodos e a amplitude da ofensiva.”
A ridicularização universal não impediu, porém, os nazistas de levarem adiante o projeto ideológico de eliminação de tudo que não fosse “puro” e “ariano”. A exposição parisiense lembra ao visitante que o impensável não surgiu do dia para a noite. “As ideias que alimentaram essa política cultural nazista foram forjadas desde o século 19”, explica Popelard.
O termo para “degeneração” em teuto, “entartung”, significa “aquilo que se afasta de sua natureza”. Foi popularizado pelo pensador Max Nordau, que publicou em 1892 um livro com esse título, ataque frontal aos artistas cujas obras seriam “antissociais” e “depravadas”.
“Os degenerados nem sempre são criminosos, prostitutas, anarquistas e lunáticos diagnosticados; muitas vezes são escritores e artistas […] que satisfazem seus impulsos mórbidos com a pena e o pincel”, escreveu Nordau. Ecos dessas ideias influenciaram intelectuais porquê Monteiro Lobato, responsável do famoso cláusula “Paranoia ou Mistificação?”, desancando uma exposição da modernista Anita Malfatti em São Paulo em 1917.
Por ironia da história, Max Nordau era fruto de rabino e foi pioneiro do movimento sionista, mas as maiores vítimas do ódio nazista aos “degenerados” foram os artistas judeus. Alguns não só tiveram obras confiscadas, mas foram presos e assassinados.
Uma das peças mais comoventes da exposição é uma missiva escrita pelo pintor e estatuário Otto Freundlich, fruto de judeus convertidos ao protestantismo, à mulher, momentos antes de ser enviado ao campo de extermínio de Sobibor. “Ainda posso te enviar um adeus antes da partida do trem”, termina. Um gesso de Freundlich foi escolhido porquê cobertura do guia da exposição da vergonha, em 1937.