Artista Une Kanye West E Michelangelo E Cria Utopia Negra

Artista une Kanye West e Michelangelo e cria utopia negra – 29/12/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Um querubim versátil se sobrepõe ao firmamento dividido entre o azul simples e o escuro. Os cabelos loiros, rosto preto e corpo simples sugerem um ser híbrido e questionam sua existência. Asas acinzentadas encontram um soalho de tons terrosos, sobre o qual florescem pequenos ramos verdes. No ar, um logo da empresa Nike, deslocado da constituição porquê se não a pertencesse.

Em sua primeira individual na Gentil Carioca de São Paulo, O Ilegítimo imagina uma utopia onde a negritude divide o quadro com iconografias associadas a uma escol histórica. Esses pontos de ruptura são a material de “My Black Utopia”.

“Essa verdade paralela só existe porque, na nossa, optamos por não incluí-la. Ela surge do mesmo risco em todos os lugares, onde a arte clássica ignora outras formas de se fazer arte. Ela sempre deriva de um pouco que foi oportuno, roubado e utilizado para o valor de outros nomes e figuras brancas europeias”, diz o artista.

Para além da figura angelical em “The Rising Angel”, esse universo paralelo procura referências culturais —tiradas principalmente do mundo da música— e incorpora outros símbolos sacros. Segundo O Ilegítimo, a teoria vai além da releitura dessas bases visuais e o objetivo é ocupar espaços e papéis que antes lhe eram restritos.

É o caso de uma das marcas mais ricas do mundo, das pinturas impressas no teto da Capela Sistina e até Jesus Cristo, eleito preto em uma obra que utiliza um Kendrick Lamar saído da capote de “Mr. Morale & The Big Steppers”.

“Quando me coloco ao lado de Kanye [West] em ‘O Promanação de O Ilegítimo [by Kanye]’, não estou relendo Michelangelo. É uma questão sobre esse cenário e tudo que o envolve, que transformo em um ato político de inclusão de símbolos”, afirma o pintor. Ele aponta o imaginário popular porquê crucial para a discussão de seus trabalhos.

“O imaginário popular só é subestimado quando as pessoas estão sendo usadas pra lá e pra cá. No Brasil, existe a cultura do jovem novato. Se a pessoa já começa em um estado de sobrevivência e vive a vida inteira nessa corda bamba, quando será incentivada a disputar espaços além do que é educada a ocupar?”

Ao subverter Narciso —jovem que se apaixona por si mesmo na mitologia grega— em um dos seus “Sem título”, O Ilegítimo valoriza outros tipos de venustidade. Os contornos de uma poça d’chuva se confundem com as pinceladas de uma noite estrelada e convidam um varão preto a buscar seu revérbero. Em sua cabeça, um destaque em vermelho vibrante: um boné da marca iFood.

Essas cores destoantes da unidade cromática criam focos de tensão. Em outras ocasiões, a provocação surge de elementos incompletos. São silhuetas, desenhos não preenchidos e ausências na imagem que desafiam os limites dessa representação.

“A tela ‘Narciso’, de Caravaggio, não se apresenta mais a partir da imagem de um suposto príncipe branco de cabelos claros, mas na pele de um varão preto com um boné do iFood cobrindo-lhe os olhos”, diz a antropóloga Lilia Schwarcz. Autora do texto crítico que acompanha a mostra, ela reforça o afinco de O Ilegítimo em revisar padrões impostos pela história da arte.

“Ele tem uma opção muito clara em sua obra por trazer esses corpos que zero têm de submissos. São corpos rebeldes e que praticam a insurreição. Assim se tornam utópicos”, diz ela à Folha.

Ainda que denunciem retrocessos, os quadros não materializam uma submissão pressuposta, mas superam algumas condições históricas ao comemorar os sujeitos dessa verdade selecção.

Exemplo disso é “Kind of Blue”, que celebra o músico Miles Davis e seu icônico álbum de 1959. As pinceladas fortes que desenham o rosto do trompetista se unem ao verdejante simples, pulsante, e reafirmam a centralidade de Davis e seu legado.

Um pouco semelhante acontece em “As Bailarinas”, série de diferentes obras de O Ilegítimo. Mesmo que não parta de um personagem específico, o conjunto humaniza figuras que aprenderam a se distanciar dos grandes palcos.

“Quantas bailarinas negras você viu em um espetáculo de balé? E em quantos deles elas eram protagonistas? Não estamos avançando contra preconceitos mesmo em uma dimensão que pertence às expressões artísticas. Nós aceitamos o balé porquê um espaço que permite o racismo. As minhas bailarinas só permanecem sem rosto porque a gente ainda vive esse aprisionamento”, afirma ele.

Se esse grupo de pinturas vem de uma preocupação pessoal, o pintor reconhece outras origens autobiográficas em seu trabalho. Criado por mãe solo no município de Mesquita, na periferia do Rio de Janeiro, O Ilegítimo esteve próximo ao catolicismo durante o propagação, bastante motivado pela avó materna.

Mais tarde, com o estudo das artes sacras e da estética clássica, passou a questionar a associação entre a fé e a revelação artística. Em “Mirim”, ele compensa essa supremacia ao pintar um espírito umbandista, normalmente retratado enquanto moçoilo.

A tanga vermelha e o par de cornos pontiagudos transgridem a limpidez da simbologia cristã, emoldurando um ser multíplice, dividido entre o muito e o mal, entre a sabedoria e a travessura, representante da dualidade humana de concordância com a sua religião de origem. São contrastes enraizados na núcleo da exposição.

“Eu penso que a arte contemporânea não tem que ter qualquer obrigação a não ser impactar. Você pode descobrir nojento, pode descobrir triste, pode descobrir potente, pode descobrir lindo, mas a arte contemporânea está além da nossa compreensão. Ela não deve ser condicionada a ter função, moral, evidente ou incorrecto”, diz O Ilegítimo.

Folha

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