Artistas Na Bienal De Veneza Tematizam Guerras Do Mundo

Artistas na Bienal de Veneza tematizam guerras do mundo – 22/04/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Os militares armados vigiando o pavilhão lacrado de Israel fazem uma performance às avessas nos Giardini da Bienal de Veneza, onde ficam as representações oficiais dos países.

Ao lado, está a morada dos americanos, onde artistas indígenas dos Estados Unidos cantaram e dançaram na tarde de sinceridade e onde também um coro de manifestantes chamou o presidente Joe Biden de genocida. Mais adiante, o pavilhão boche foi escopo de gritos de “Estado nazista” do lado de fora e mostrou trabalhos de uma israelense radicada em Berlim do lado de dentro.

Esses três espaços, envoltos em tensão que extrapola o variegado mundo da arte movido a prosecco nestes dias, sintetizam o estado caótico de um planeta que nós destruímos, a ponto de nos sentirmos também estrangeiros na própria morada, tema meão desta edição da mostra italiana. Tão estrangeiros que estamos em plena procura de uma rota de fuga.

O pavilhão boche dá ares de ficção científica e verniz futurista a essa teoria. Do lado de fora, um monte de terreno bloqueia a porta monumental do palácio, forçando o público a entrar pela lateral. Dentro, Yael Bartana mostra o protótipo reluzente de uma grande nave espacial, aquela que vai resgatar a humanidade e levar todos até outro planeta ainda não tóxico.

Nem todo mundo, no entanto, tem um lugar na nave. Os judeus vão primeiro, argumenta um rosto num televisor, dizendo que seria proveniente cada povo depois produzir sua própria espaçonave e fugir para longe daqui, um lugar onde principiar do zero.

É um tanto macabra a parábola de Bartana, talvez uma menção à história acidentada da formação do Estado de Israel, na ressaca de uma grande guerra e agora à luz do conflito sangrento entre seu país e o Hamas na Tira de Gaza, que já matou mais de 30 milénio.

Essa rima insondável de corpos fez com que outra israelense, Ruth Patir, decidisse não transfixar sua exposição no espaço israelense, a poucos metros do pavilhão dos alemães. Um edital na porta diz que a inauguração depende de um cessar-fogo inopino e a libertação dos reféns da guerra. Enquanto isso, continuam plantados firmes ali os militares com face de poucos amigos.

Bartana, em sua exposição, ainda mostra um filme ao lado de sua nave. Nele, homens e mulheres dançam numa roda vestindo trajes que remetem aos gregos da Antiguidade. O balé conclama a figura de um rapaz musculoso quase pelado segurando uma tocha acesa. Ele aponta para o firmamento e incendeia o cosmos, sinal de partida para uma novidade cultura, com seus mitos fundadores e tudo.

Não há zero de bom para deixar para trás, aliás. É o que mostra Ersan Mondtag, boche de origem turca, no mesmo pavilhão. Ali ele construiu a réplica da morada do avô que morreu contaminado por asbesto depois de trabalhar quase três décadas numa fábrica de cimento na Alemanha.

Sujos de pó, atores dentro da estrutura encarnam os fantasmas do operário, figuras tristes imersas na rotina doméstica de um apartamento em ruínas.

É de precarização, estafa e morte que muitos trabalhos falam em toda a mostra. Doruntina Kastrati, artista que representa o Kosovo e venceu a láurea de menção honrosa do júri da Bienal de Veneza, trilhou um caminho menos teatral para mirar o mesmo problema.

Suas esculturas minimalistas de verniz metálico, tons dourados e acobreados, remetem tanto às nozes que são substância de um gulodice tradicional de sua região quanto ao formato das próteses de joelho que muitas mulheres que trabalhavam na fábrica desses doces tiveram de implantar depois de décadas de trabalho extenuante em pé.

Se elas sobreviveram, mesmo que com um corpo estranho enxertado nas pernas, outros não ficaram para narrar sua história. O pavilhão australiano, grande vencedor da mostra com o Leão de Ouro de melhor representação pátrio, constrói um memorial para seus indígenas mortos em séculos de exploração.

É um altar sequioso, em que milhares de certidões de promanação e morte, um pausa pequeno entre os dois eventos, se empilham numa mesa no núcleo de uma sala escura rodeada por um espelho d’chuva. De longe, esses volumes de papel lembram construções mais altas ou mais baixas na maquete de uma cidade. Não é fortuito.

Archie Moore, artista de progénie nativo que representa os australianos, parece manifestar com delicada sofisticação que os alicerces de sua sociedade estão fincados na mortandade e no extermínio dos povos nativos da terreno, uma vez que se a base da construção de tudo fossem esses cadáveres reduzidos a pó e pilhas estéreis de documentos, registros de chacinas e epidemias trazidas pelos brancos.

Em volta deles, Moore desenhou com giz nas paredes uma árvore genealógica vertiginosa, que representa 65 milénio anos de ancestralidade nativo, cada nome e ramo familiar encerrado num retângulo, um empilhado sobre o outro, uma vez que tijolos formando uma grande paredão.

É de outra ordem a construção de Sandra Gamarra Heshiki, no pavilhão espanhol. Transformando a arquitetura despojada do espaço, a artista peruana radicada em Madri, mais uma estrangeira em todo lugar, ergueu paredes e adornos de pendor clássico para formar uma tradicional pinacoteca, um gabinete de curiosidades à tendência antiga.

Isso, no entanto, é só a superfície. A renque de paisagens, por exemplo, mostra visões do novo mundo à tendência dos artistas viajantes da era das grandes navegações, mas sobre as matas e mares estão escritas frases de pensadores, entre eles o brasiliano Ailton Krenak, lembrando que as composições do idílio pintado por aqueles a serviço dos conquistadores deixava para fora do quadro os antigos donos da terreno, aqueles que seriam explorados e depois exterminados.

O museu de peta de Heshiki também lembra vítimas mais recentes. A sala dedicada a representações da flora, com belos e delicados desenhos de vegetalidade e flores em que se misturam também alguns membros decepados de corpos humanos, traz o rosto de Marielle Franco uma vez que a raiz de um hibisco cor-de-rosa.

Um dos pavilhões mais aclamados desta Bienal de Veneza, com longas filas na porta, a Espanha da artista é forçada a encarar seu pretérito de atrocidades numa montagem precisa e irônica, ao mesmo tempo em sintonia com a consciência agora tão na tendência entre as grandes potências de lavar com a formosura das artes visuais a roupa suja de séculos de história.

Zero, finalmente, é tão branco, sem máculas, quanto o cubo branco de uma galeria, cenário neutro para mostrar obras de arte inocentes —só que não.

O pavilhão holandês, também uma obra-prima de humor sombrio, se esforça para edificar um ataque ao próprio mundo da arte do qual faz segmento, num tirocínio ácido da chamada sátira institucional, aquilo de roer por dentro as engrenagens do sistema que se tornou uma vanguarda artística já muito documentada nos livros de história.

No prédio modernista dos holandeses, o coletivo Cercle d’Art des Travailleurs de Plantation Congolaise, ativistas que tentam restaurar as suas terras exauridas na República Democrática do Congo, mostram esculturas de greda revestidas de cacau e óleo de dendê, dois dos produtos do velho predomínio colonial belga.

Não são bonitas de ver. Uma retrata um estupro, baseada num caso real de um solene belga que violentou uma mulher numa das investidas coloniais para subjugar trabalhadores escravizados. Outra é uma parábola que fala à brutalidade do mundo da arte atual. Mostra a figura de um colecionador cavalgando um touro insubmisso, símbolo da voracidade do capital que faz movimentar esse mercado e da euforia desmedida em torno do volta.

Todo o jet-set que frequentou esses dias de sarau em Veneza, aliás, teve seus passos dentro da galeria nos Giardini transmitidos em tempo real para a plantação em Lusanga, na República Democrática do Congo, onde uma galeria gêmea funciona uma vez que embaixada.

É a síntese orwelliana de um mundo em curto-circuito, espelho do paradoxo que Ailton Krenak já havia notado em suas “Ideias para Delongar o Termo do Mundo”. Estamos falando do despenhadeiro que separa aqueles que precisam viver de um rio daqueles que consomem os rios para viver.

Folha

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