As Chuvas No Sul E O Temor Do Apocalipse Climático

As chuvas no Sul e o temor do apocalipse climático – 15/05/2024 – Fernanda Torres

Celebridades Cultura

Em 2006, participei das filmagens de “Saneamento Obrigatório”, de Jorge Furtado, na região de Bento Gonçalves, na serra gaúcha. Secção do trabalho se deu em Santa Teresa, cidade banhada pelo rio Taquari.

Acostumada à ocupação caótica das zonas rurais e urbanas do Rio de Janeiro, com comunidades carentes erguidas em encostas íngremes e lajes de barracos equilibradas sobre fundações precárias, me pareceu assombrosa a visão daquele Brasil separado da desgraça social do improviso.

A morada escolhida uma vez que locação para os personagens vividos por mim e por Wagner Moura pertencia a uma família de origem italiana, produtora de laranjas e hortaliças. Quando o coche da produção estacionou diante de uma residência ampla de classe média, demorei a entender que ela pertencia a agricultores. Era inconcebível, para mim, que o campo, fora do grande negócio do agro, pudesse gerar tamanha prosperidade.

Prosperidade não no sentido de riqueza, mas de pundonor, daquilo que uma propriedade média de terreno muito cultivada pode gerar para uma família do campo. Todo o entorno de Santa Teresa era assim, exemplo de colonização humana, sem ganância e sem miséria.

Quando soube da tragédia, escrevi para Jorge Furtado detrás de notícias. “Secos e vivos”, me disse o diretor, “mas Santa Teresa está debaixo d’chuva”. Corri para o Google Earth e lá estava ela, no epicentro da inundação do Taquari.

Dezoito anos antes de “Saneamento Obrigatório”, vivi acampada por três meses no Parque Pátrio do Xingu, para a realização de “Kuarup”, de Ruy Guerra. Grande segmento da filmagem se deu nas proximidades das aldeias dos yawalapitis e dos camaiurás, com unicamente um deslocamento para fora do território indígena, até a cidade de Aripuanã, em Mato Grosso, para registrar uma cena na portanto portentosa cascata das Andorinhas.

Aripuanã era o velho oeste brasílico, com ruas de terreno batida, bares de garimpeiros ilegais e serrarias sem termo, que viviam de irmanar a madeira sublime do desmatamento. Fora os aventureiros, os habitantes de Aripuanã eram todos louros de olhos azuis, descendentes de alemães e italianos trazidos dos estados do Sul pelos militares, nos anos 1970, para colonizar a floresta.

Havia, penso, na estratégia de ocupação da Amazônia do período da ditadura, a teoria de que os colonos europeus seriam capazes de domar a selva. Na prática, o que se via era um retrocesso civilizatório, com filhos e netos de trabalhadores rurais, uma vez que os que encontrei em Santa Teresa, dragados pela exploração predatória à qual foram condenados.

A progénie europeia não garantia o desenvolvimento, o erro estava no projeto extrativista de ocupação. Num solo inadequado para a cultura agrícola na qual haviam desenvolvido, só restou aos assentados serem agentes de uma tragédia ambiental que, anos depois, faria o firmamento desabar sobre o estado de seus maiores.

As chuvas recentes do Rio Grande do Sul alimentam o temor da irreversibilidade do apocalipse climatológico. E, para combater o derrotismo, cito o caso da lagoa Rodrigo de Freitas, no coração da zona sul do Rio de Janeiro, em torno da qual me criei.

Na minha puerícia, a lagoa era um esgoto a firmamento descerrado, com águas pútridas rodeadas por cimento e mortandade de peixes recorrente. Trinta e cinco anos detrás, o biólogo Mario Moscatelli decidiu restaurar o mangue por conta própria. Mais tarde, a prefeitura ampliou o ducto de conexão com o mar e parcerias público-privadas se engajaram na construção de um argola de saneamento que interrompeu o resíduo direto de dejetos na chuva.

Hoje, o bicho varão divide a sombra do manguezal de Moscatelli com capivaras, peixes, pássaros nativos e migratórios, que voltaram a habitar o sítio.

Mas havia um trecho da ciclovia, na fundura do Galanteio do Cantagalo, que alagava sempre que chovia. Perdi a conta das vezes em que vi a obra ser refeita, até os urbanistas se convencerem de que era inútil lutar contra a natureza. Fez-se um meandro no trajectória, ampliou-se o manguezal e nunca mais foi preciso reurbanizar a superfície.

Talvez, a exemplo da lagoa, muitos gaúchos não possam retornar aos seus locais de origem. Serão necessários recursos, ciência e planejamento para realocar a população, reinventar a economia e restituir a mata ciliar.

A ameaço ambiental não é de esquerda nem de direita, mas o oportunismo eleitoral que procura votos da sanha bolsonarista não se envergonha de enaltecer um ex-presidente que incentivou o mina, desmantelou o Ibama, passou o philishave na mata e proibiu que o maquinário das máfias madeireiras fosse destruído.

Diante da desgraça do Rio Grande do Sul, espero que essas lideranças abandonem o populismo suicida negacionista e parem de incendiar o país.


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Folha

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