'as Linhas Da Minha Mão' é Belo Melodrama Feminino

‘As Linhas da Minha Mão’ é belo melodrama feminino – 22/04/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

A exatos 46 minutos de “As Linhas da Minha Mão”, surge na tela a imagem magnificiente de Viviane de Cassia Ferreira, empunhando um guarda-chuva, numa situação entoada pela sensível e meio johncoltraneana “Quiromancia”, do mineiro Rakkaus Duo.

É uma cena possante, quando já sabemos muito sobre o que ela passou na vida, entre amores, dores, alegrias e melancolias. Esse momento é uma confluência de tudo que está em jogo neste belíssimo filme de João Dumans.

Viviane, que também se autodenomina Vivi, Viva e até Laura, é uma derivação de si própria, entre memórias, relatos objetivos, sábias constatações vindas pela emoção e pela razão.

Viviane tem, também, transtorno bipolar desde 2003 e integra, porquê atriz, o grupo de geração e pesquisa Sapos e Afogados, de Belo Horizonte, dos quais foco é expandir o significado da arte e integrar socialmente as pessoas com distúrbios mentais. Sua sabedoria e seus sonhos vêm, logo, do drama.

A fluidez de suas íntimas declarações sobre o que a exaspera e o que a encanta lhe dá um cimalha status porquê personagem de cinema. Principalmente no documentário, mais especificamente o inaugurado por Eduardo Coutinho com “Santo Possante”. O entrevistado, com seu desembaraço diante da câmera, teria ali uma força dramática tal a de um performer.

Se todos os grandes documentários parecem devotos de Coutinho, não seria dissemelhante cá. O que não é nenhum demérito, pois o filme de Dumans tem muito a ver com a obra-prima “Moscou”, de 2009, onde Coutinho se volta mais para o processo e as consequentes descobertas.

É justamente essa teoria de filme-processo que faz de “As Linhas da Minha Mão” um possante filme sobre a procura de uma equipe de artistas de cinema em deslindar a melhor imagem para falar sobre um pouco —no caso, a história de Viviane de Cassia Ferreira.

O que surge de incrível nisso é que o filme de vestimenta —o que entendemos porquê filme narrativo— em tese começa na sequência final, quando Viviane aparece numa performance de palco. Daria para traçar a história de uma mulher, no caso Viviane de Cassia Ferreira, por imagens da própria Viviane, da atriz em procura de sua atuação —e também de si mesma— à artista fazendo sua personagem no palco, na performance “Moto-Contínuo”.

Importa muito lembrar que Dumans, que dirigiu “Arábia” com Affonso Uchoa, repete cá sua pessoal afinidade pela narrativa. No filme de 2017, a invenção de um quotidiano calçava a longa e emocionante história de um operário. Agora, neste “As Linhas da Minha Mão”, em águas documentais mareadas pela consciência de performance que só os atores têm, encontramos uma mulher real falando de si.

Ficção, esse belíssimo filme era uma espécie de saga proletária. Neste documentário de 2023 —hibridizado pela ficcionalidade de Viviane, importa lembrar—, temos, no melhor sentido do termo, o melodrama de uma possante mulher. Não há, assim, porquê dissociar a estrutura do filme do “enredo”.

E a seleta de assuntos e buscas que ocorre ao longo do filme firma a soma de peças que se juntam numa espécie de Lego a ser armado —no caso, “quem é a mulher e atriz Viviane de Cassia Ferreira”.

Não à toa, a estrutura se afina à do teatro, em sete atos e contando com a trilha de cordas rascantes do O Grivo e uma espécie de tentativa fotográfico, com imagens capturadas pelo diretor e pelo artista visual Desali, reunindo a material humana na cena noturna de Belo Horizonte.

Esse tema, aliás, reforça o quanto o filme carrega, em sua metalinguagem e “obra em processo”, uma relação com a vida e mundo —zero mais documental que isso.

Há ainda as tais linhas da mão de Viviane. Elas vêm de Friedrich Nietzsche. Numa conversa inicial, onde os escritos rebeldes e revisionistas de “Lusco-fusco dos Ídolos” são comentados, é dito que o filósofo teuto colocou porquê entendimento do tempo “um sim, um não, uma reta e três pontinhos”. Viviane rebate dizendo que colocaria um triângulo, “um estabilidade instável, precário, é um eterno recomeço, não tem termo”. Tal as linhas manuais de Vivi.

Nietzsche perdeu a razão aos 44 anos. Zero a ver com o transtorno bipolar de Viviane, mas há uma inegável relação sobre entendimento de mundo. Nietzsche defendia um pensamento livre de amarras morais. Viviane, que compreende a existência porquê uma espécie de dança, com seus voos e quedas, defende uma orifício à vida e às mais diversas experiências.

Ela “escreve” detalhadamente, em corpo e voz à câmera, sobre seus surtos, a solidão e o sexo com um companheiro italiano. Uma exposição que confirma Viviane porquê uma mulher linda na tela. Uma estrela.

Por termo, é quase notório que, à exceção de “Dias de Nietzsche em Turim”, de Julio Bressane, nunca houve outro filme na história do cinema brasílio a trazer Nietzsche para si.

Folha

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