A força das rezas de Vovó Francelina protegeu Áurea Martins e também foi referência para um de seus principais trabalhos, o álbum Senhora das Folhas, considerado uma obra antológica por especialistas e indicado ao Grammy Latino. Perto de 85 anos de idade e com mais de 50 de curso, a cantora celebra rezadeiras e benzedeiras em suas faixas e conta a relação pessoal do tema com sua história em entrevista à Dependência Brasil.
“Eu sempre fui rezada por uma rezadeira que tinha 102 anos. Ela não chegou a ser escrava, mas os pais foram. Vovó Francelina, em Campo Grande [bairro da zona oeste do Rio]. Eu sou de lá, né?”, disse, lembrando que ainda tinham uma tia e uma outra senhora, que morava perto da sua morada. “Eu lembro até hoje da reza da Vó Francelina. A gente chamava de Vó. Ela tinha 102 anos, era vizinha. Pegava as ervas…[fez o gesto de rezadeiras] Eu acho que dá uma proteção enorme. Eu já fui assaltada com revólver na rosto, mas acho que estou em uma redoma. Não acontece zero”, completou.
Desta sexta-feira (28) até domingo (30), vai apresentar o show Senhora das Folhas, no Teatro da CAIXA Cultural Brasília, no setor bancário na asa sul. “Do mesmo jeito que tem sido, com muita gente. Agrada ao público”, disse, sobre a recepção que espera da plateia para levante show, na cidade onde já fez outras apresentações.
Uma das mais marcantes foi logo depois de vencer, em 1969, no concurso do programa A Grande Chance, apresentado por Flávio Cavalcanti, na emissora carioca TV Tupi; Outra foi um show com João Bosco, quando cantou bossa-nova e jazz. Houve ainda um outro, com o cantor Emílio Santiago.
O nome do espetáculo, que tem roteiro, direção artística e de produção de Renata Grecco, é o mesmo do álbum lançado em 2022. Apesar de recente, é considerado pela cantora porquê atemporal. Aém da celebração às rezadeiras e benzedeiras, há espaço para coco de roda, ritmo afrobrasileiro característico da região nordeste; esquina indígena; sambas e canções de artistas contemporâneos, porquê Projota, Flaira Ferro e Arlindo Cruz. Áurea gosta de todas as músicas, mas não deixa de provar as letras que a tocam mais.
“Todas elas, porque falam fundo em mim, mas Me Tratar de Mim e A Rezadeira…[bate no peito mostrando emoção] Olha, eu palato do disco todo. Senhora Santana [um bendito de origem medieval], Santo Antônio de Categeró [louvação que faz na música Prece do Ó]”, continuou elencando as mais sensíveis.
Ainda pensando em proteção, fala com felicidade que nasceu no dia de Santo Antônio, 13 de junho. “Vou festejar o meu natalício lá no Teatro Rival. Quem estiver lá eu chamo para o palco”, adiantou, recordando que já teve um ícone da bossa novidade entre os presentes.” Eu sempre faço natalício no Rival. Johnny Alves estava lá. Ele gritou ‘vou aí também’. Ele subiu e tocou”.
Álbum
Em princípio, a produtora Renata Grecco chegou a pensar em fazer o projeto com várias cantoras convidadas, mas desistiu ao ouvir Áurea cantando. “Não deu outra, né? Foi a pessoa perfeita para o lugar patente”, contou à Dependência Brasil, Lui Coimbra, multi-instrumentista, cantor e diretor músico do espetáculo.
O envolvimento com as músicas que canta em toda a sua trajetória é completo. “Eu sou muito de pensar no texto e o que ele quer proferir. Mergulho fundo no texto. Não sei explicar, sei que viajo. Às vezes, estou sem voz para trovar, mas, na hora, flui, porque eu faço muita coisa com a voz”, disse Áurea, revelando ainda que sente de súbito o retorno do público.
Generosa, reconhece o talento dos músicos que a acompanham. “Eu sozinha não ia fazer. Tem o André Gabeh, o Marcos Suzano, Fred Ferreira, o Lui [Coimbra]. Eu não faço zero sozinha. O Lui que dirigiu”, pontuou.
Indicação
O álbum Senhora das Folhas tem também um outro significado. Trouxe um reconhecimento inédito. “Chegou o Grammy Latino. Foi a primeira vez que eu tive um disco [indicado], já tive um [outro] disco do Paulo César Feital, mas era uma participaçãozinha. Mas meu disco, nunca. Olha que tive disco até com Luiz Eça, e nunca tive indicação. Acho que caiu porquê uma luva”.
Na trajetória de Áurea estão nove discos solo, diversas participações em outros, além do prêmio de Melhor Cantora no Prêmio da Música Brasileira 2009 e um curta-metragem sobre sua vida com mais de 21 prêmios, inclusive de melhor atriz.
Ela recorda também muitos encontros com artistas de destaque da música brasileira. Sobre uma delas, tem boas recordações. Áurea teve participação direta no início da curso de Elis Regina, que foi tentar uma oportunidade na Rádio Pátrio, na qual Áurea já participava do programa Paulo Gracindo.
“Eu sou afilhada do Paulo Gracindo. Ela estava chegando [do Rio Grande do Sul] e foi trovar lá também. Foi permitido. Eu ficava pensando ‘essa pequena fala’, mas aí começou a amizade. Quando ela abriu a boca e cantou, eu falei ‘que coisa’ e perguntei ‘que voz é essa?’. Ela falou que adorava Angela Maria. Depois, nunca mais eu vi e não quero ver agora também não”, contou sorrindo.
Filarmónica
A filarmónica que acompanha Áurea nestas apresentações também é de reverência. Além de diretor músico do espetáculo, Lui Coimbra assume o violoncelo, o violão, a rabeca, o charango andino e os vocais. Nas guitarras e vocais, estará Fred Ferreira. O pandeiro e a percussão ficarão a incumbência do aclamado Marcos Suzano. No contrabaixo acústico, Pedro Aune, e André Gabeh na voz.
“Tem sido sempre muito poderoso, uma virilidade muito contagiante com a plateia. O roteiro está muito redondinho. Começa com o Ramo, que é uma música que fala do paixão que é uma coisa mesmo de rezadeira, com aquele vozeirão dela, vai subindo, e daqui a pouco tem uma que é quase um afropop, um esquina para Ossain [orixá]. Tem o esquina das caboclas, muito afro, e o samba Ilu Ayê, que canta acompanhada de Marcos Suzano”, descreveu Lui Coimbra.