“Bagaceira”, Dona Onete explica, é um termo que designa termo de sarau. Mas no léxico da cantora e compositora paraense —e do universo popular que, ao completar 85 anos, ela domina e representa—, termo de sarau não é pejorativo, indicativo de farra decadente. É o oposto disso.
Bagaceira é quando a coisa fica boa, pés já sem sapatos, as etiquetas e travas sociais deixadas de lado em nome da alegria, que reina soberana e sincera. “Bagaceira”, recém-lançado quarto disco de Dona Onete, materializa essa alegria pura e desarmada em dez músicas, todas compostas por ela, que se espalham por 38 minutos num passeio por diferentes gêneros do cancioneiro paraense, do boi ao brega, do banguê ao carimbó.
Pura, desarmada. Zero é ingênuo, porém, em “Bagaceira”. Muitas vezes —mal— entendida porquê naïf, “raiz”, “autêntica”, uma figura “do povo” que reproduz “tradições” do Setentrião, Dona Onete é, pelo contrário, artista com “A” maiúsculo, pensadora cultural que apreende o mundo que a muro e o elabora em forma de cantiga, processando, recriando e inventando tradições. Seu novo disco é a confirmação dessa natureza que ela mostra desde o início —tardio, aos 73 anos— de sua curso.
“Bagaceira” expõe uma gramática poética e músico, um universo imagético e sonoro, personagens e cenários —a assinatura de Dona Onete. Elementos que, pelas suas mãos, desenham um Pará tão documental quanto deliberadamente construído, tal qual a Mangueira de Cartola, o Pernambuco de Alceu Valença e a Bahia de Dorival Caymmi.
Já na primeira tira, que dá nome ao disco, aparecem alguns desses elementos. A música de Dona Onete não vasqueiro confunde os limites da representação e da coisa em si. Ou seja, a sarau da qual fala “Bagaceira” não é somente contada na cantiga, é realizada ali —os gritos de “ê”, a dinâmica explosiva do restauro emulando a dinâmica da própria farra com instrumentos entrando e saindo, o ritmo mudando de banguê para brega no verso que diz “toca brega”.
Procedimento semelhante se repete em outras canções. Em “Chamego Mestiço”, Dona Onete canta “o choque do poraquê” —peixe-elétrico da bacia amazônica— separando as sílabas, “cho-que”, porquê se lançasse na vocábulo a descarga elétrica do bicho. Já no carimbó “Curió Cantador”, ela alonga a nota da vocábulo “voou”. O efeito sugere o próprio voo do pássaro, sumindo no horizonte.
“Sarau no Ver-o-Peso” lança olhar carinhoso e debochado de quem conhece e entende aquela feira à beira-rio de Belém. Na cantiga, a elegante garça namoradeira, que Dona Onete descreve porquê “fit, light, diet e society”, convive ali com o urubu, o rato, a barata, a mosca e a formiga, quinteto que comanda a música da tal sarau. Com recta a onomatopeia para o som de cada um. Espécie de “O Pato” da bossa novidade sem o selo da vigilância sanitária.
Na pena de Dona Onete, o vocabulário é mais do que cor sítio, testemunha do processo cultural que moldou o português da região Setentrião. Palavras porquê “popopô”, “pitiú”, “pavulagem” e “tamaguaré” são exploradas em sua força imagética e em sua musicalidade, na delícia de suas sílabas. Em nenhum momento a artista perde de vista que suas palavras nascem para serem cantadas.
A repetição de uma vocábulo é outro recurso generalidade em suas canções, com efeito sempre eficiente. Seu primeiro sucesso, “Jamburana”, tinha “o jambu treme, treme, treme, treme, treme”. No novo disco, há vários exemplos —”minha paixão é cabocla, é cabocla, é cabocla, é cabocla”, em “Paixão Cabocla”, ou em “essa mulher vem chegando, chegando, chegando, chegando, chegando”, em “Lunlambumbarió”.
A atuação de músicos porquê Pio Lobato, Marcos Sarrazin e Felix Robatto dá consistência ao Pará de Dona Onete. Íntimos das linguagens paraenses, eles são ao mesmo tempo inventivos e precisos no trato das harmonias simples e melodias diretas, típicas dos gêneros populares que a compositora explora. Frases de sax saltitantes, mão direita nervosa nas guitarras e banjo, plebeu marcando o diálogo irresistível com a percussão e a bateria.
Calor em forma de música. Calor e umidade também se mostram de forma evidente na porção sensual e romântica do repertório, outra marca de Dona Onete —apelidada, não à toa, de rainha do carimbó chamegado. O brega abolerado de “Manipanço da Lua” e o brega jovem guarda de “Avesso do Avesso”, canções de dores do paixão, são bons exemplos.
Mais quentes e úmidas são “Banguê Latino” e “Paixão Cabocla”, que procura metáforas amazônicas para dar conta de descrever o libido —”toda vez que eu vejo você/ o meu corpo se desloca/ nas ondas da pororoca”. Síntese simbólica da integração entre paisagem e artista que se mostra em Dona Onete — no que ela tem de núcleo e, sobretudo, de elaboração.