Depois de quatro longas, o tal do universo “John Wick” já está devidamente estabelecido, com seus matadores espalhados pelo mundo e uma espécie de relação subterrânea que facilita deslocamentos. É uma árvore que pode dar diversos frutos, desde que obtenha sempre resposta positiva do público.
“Bailarina”, o primeiro galho dessa árvore, nasce de uma novidade história de vingança. Diferentemente de John Wick, o taciturno matador que começa uma chacina para vingar a morte de seu cachorro, Eve, a heroína interpretada por Ana de Armas, quer vingar a morte de seu pai, testemunhada por ela quando rapaz. Para isso, precisa contrariar as regras dos matadores, matando sem a autorização da cúpula.
A primeira grande diferença é que John Wick tem facilidade para vingar a morte de seu cachorro. O mais difícil é se livrar depois do bumerangue de violência que suas ações provocaram, com sua cabeça a prêmio.
Eve, por outro lado, sabe que para conseguir sua vingança precisa zarpar todo um sistema. Ela pertence à organização Ruska Roma, dentro da qual Angelica Huston interpreta uma professora de balé, além de estar mais perto de suas soldadas e responder por elas.
Ao buscar vingança contra membros de outra organização, com a qual a Ruska Roma tem uma trégua, ela praticamente declara guerra e passa a ser perseguida por todos os lados, da mesma forma que Wick nos outros quatro longas.
A dualidade entre a elegância do balé e a violência das matanças dá o tom do filme, espelhando a delicadeza dos traços da atriz com a chacina que ela provoca.
Mas cá entra a segunda grande diferença, que nos permite invocar uma velha aliada dos críticos —a política dos autores. Essa diferença não está no elenco —pois em material de carisma, Ana de Armas se equivale a Keanu Reeves—, mas na direção.
Segundo o que defendiam, nos anos 1950, alguns dos críticos da revista Cahiers du Cinéma, o cinema é a arte do diretor, e aqueles que tinham uma visão única, traduzida num estilo próprio, poderiam ser considerados autores. De negócio com essa política, os filmes de um responsável, por piores que fossem, eram mais interessantes que os filmes de um não responsável, por melhores que fossem.
Descontados os exageros dessa política, dá para entender sua longevidade, mesmo imersa em muitas críticas e combates incessantes de realizadores e muitos críticos fora e dentro da revista.
No que sobrou dela atualmente, podemos manifestar que “Bailarina” não tem o mesmo nível de nenhum dos longas da série John Wick porque Len Wiseman é um diretor mais restringido que Chad Stahelski. Sua mise-en-scène é menos requintada e menos efetiva, com enquadramentos menos pensados.
Mas relembrar a política dos autores em um filme hollywoodiano, hoje, é sempre uma cilada. Muitos envolvidos com a produção falam em diversas cenas refilmadas por Stahelski porque o galanteio de Wiseman desagradou os produtores, entre eles o próprio Stahelski.
Refilmar cenas é uma prática generalidade desde sempre em Hollywood. Costuma-se respeitar o estilo e o padrão visual de quem assina o filme e dirigiu a maioria de suas cenas, até por uma questão de perenidade estética. Ainda assim, é grande o risco de equívocos de estudo –o que é de Stahelski? O que é de Wiseman? O que foi filmado por um diretor de segunda unidade?
A geração de um universo em que matadores se misturam às pessoas e provocam tiroteios em todos os lugares, seja uma estação de metrô ou uma moradia noturna, exige muita precisão, humor e uma boa ração de sem razão —presente, por exemplo, na cena de “John Wick 2” em que o matador e seu perseguidor andam em paralelo com uma povo de pessoas enquanto atiram um no outro sem se importar com balas perdidas.
Ou na reação coletiva que acontece, a partir do segundo longa, quando uma recompensa é oferecida e vemos todos os transeuntes verificando o celular e procurando Wick com o olhar —a contaminação do impulso criminoso, a teoria de que todo mundo pode ser caçador de recompensa.
Essa precisão e o tom claro na geração desse universo nós encontramos na direção de Chad Stahelski, capaz de promover o binômio delicadeza e violência e de estabelecer esse mundo pessoal com imenso sucesso.
Esse tipo de coisa existe de modo muito mais tímido em “Bailarina”. Mesmo numa cena no teatro, quando já esperávamos o mesmo padrão, Len Wiseman parece evitar esse elemento em que Stahelski triunfou. O mundo criado por Wiseman é escravizado por gente generalidade, mais parecido com o que conhecemos.
Se a coreografia de algumas cenas de ação fica a desejar quando comparadas às dos quatro “John Wick”, elas ao menos dão conta do recado –zero da indigência da maior segmento dos filmes da Marvel– e poucas vezes derivam para a bagunça visual.
É interessante o modo porquê o universo dos quatro longas, principalmente do terceiro, “John Wick 3: Parabellum”, de 2019, pela cronologia dos eventos, sofre a invasão de Eve. Ela encontra vários personagens conhecidos da série, a inaugurar pela óbvia Angelica Huston. É uma costura bem-feita para integrar o drama de Eve no mesmo universo em que John Wick transita.
Um outro trunfo está na fluidez de “Bailarina”. Apesar de ter muitas cenas de ação, o que poderia resultar numa certa ressaca da aceleração manente, o filme passa suave, recreativo, não nos sentimos cansados com a montanha-russa.
O crescendo que nos levou a “John Wick 4: Baba Yaga” foi interrompido, mas zero nos impede de imaginar que uma novidade evolução esteja no horizonte.