[RESUMO] Quarenta anos antes de “Ainda Estou Cá”, “O Ósculo da Mulher Aranha”, coprodução de Brasil e Estados Unidos filmada em São Paulo, também concorreu ao Oscar de melhor filme, façanha muitas vezes menosprezada na lista de conquistas de nosso cinema pelo vestimenta de ser falado em inglês. Reportagem relembra a produção e o sucesso do filme e procura entender quão brasiliano ele é a partir de lembranças de seu produtor-executivo, do logo presidente da Embrafilme, dependência estatal de fomento ao cinema, e da atriz Sonia Braga.
“O Ósculo da Mulher Aranha” é um filme brasiliano? A questão voltou à tona, turbinada pelas redes sociais, em meio ao exalo coletivo pelas três indicações de “Ainda Estou Cá” ao Oscar. Quatro décadas antes, o longa do prateado Héctor Babenco, falado em inglês e com protagonistas estrangeiros, também foi indicado a melhor filme. Mas seria uma conquista do cinema pátrio?
Esse estranhamento não é inédito. Em 24 de março de 1986, uma segunda, mesma data do Oscar daquele ano, o logo presidente José Sarney assinou um decreto que estabelecia o que é filme brasiliano. Entre os critérios estavam ser produzido por empresa cuja maioria do capital e controle pertencessem a brasileiros; ser falado em português, admitindo-se outro linguagem quando necessário ao argumento; ser dirigido por brasiliano ou por estrangeiro residente no país há mais de três anos; e apresentar em sua equipe técnica e elenco artístico dois terços de brasileiros.
No dia seguinte, na ressaca da premiação, Babenco disse à Folha que checou as novas exigências e confirmou, com orgulho, que a sua obra era pátrio.
“A prensa brasileira fala que eu sou prateado radicado, os argentinos dizem que eu sou brasiliano; vou rematar me mudando para Uruguaiana”, declarou na era, citando a cidade no Rio Grande do Sul que fica na fronteira com a Argentina.
A confusão com a identidade pátrio vem do vestimenta de “O Ósculo” ter estrangeiros demais na vitrine, porquê ilustram suas quatro indicações ao Oscar. Babenco, finalista a melhor diretor, era um prateado naturalizado brasiliano. William Hurt, vencedor do Oscar de ator pelo longa, era americano, assim porquê o produtor David Weisman (indicado a melhor filme) e o roteirista Leonard Schrader (que concorreu a melhor roteiro).
Para complicar ainda mais, a obra adapta um romance do prateado Manuel Puig, um texto contra o peronismo, e não tem um único diálogo em português entre os protagonistas. Do elenco brasiliano, Sonia Braga tinha o maior destaque, mas também atuou em inglês.
No filme, dois prisioneiros —Valentin Arregui (interpretado por Raul Julia), recluso devido a suas atividades políticas, e Luis Molina (William Hurt), gay denunciado de “subornar um menor de idade”— passam o tempo contando histórias um ao outro, mas só falam em inglês, o que é estranho, considerando que a história se passa no Brasil.
A produção, todavia, é brasileira. Foi toda filmada no país, nos antigos estúdios da Vera Cruz, em São Paulo, e algumas cenas em Paraty, no Rio, entre outubro de 1983 e março de 1984. Os principais nomes da equipe técnica eram brasileiros. E o orçamento veio quase todo daqui. Ao contrário da maioria dos filmes nacionais da era, “O Ósculo” foi feito com investimentos privados.
“A produção é totalmente brasileira”, afirma Francisco Ramalho Jr., produtor-executivo do filme. Cita o envolvimento de 11 investidores paulistas, que ajudaram a bancar a produção com pagamentos mensais, e do legista Altamiro Boscoli, que coordenou a captação privada de US$ 1,5 milhão na era (US$ 4,42 milhões hoje, murado de R$ 25 milhões). Dos Estados Unidos, o pouco verba veio quase todo de dois nomes, Jane Holzer e Michael Maiello, creditados porquê produtores associados.
Entre os investidores brasileiros, Ramalho menciona o Hotel Maksoud, que hospedou Hurt e Julia durante as filmagens. Os dois atores aceitaram receber um pagamento mínimo, em troca de percentual de bilheteria, prática que só ficou generalidade na indústria anos depois.
“O Bill [Hurt] e o Raul [Julia] eram cotistas do filme, tanto quanto eu, o Héctor [Babenco] e os demais. Eles mal ganhavam um salário por dia, era tão minúsculo que não dava uma diária.”
O crédito de Weisman porquê único produtor do filme, e único inscrito na categoria melhor filme, é duvidoso. Segundo Ramalho, o americano trabalhou em funções hoje associadas ao produtor-executivo. Ramalho e Babenco, os produtores de vestimenta no filme, preferiram os créditos de produtor-executivo e diretor.
O longa só contou com o envolvimento da Embrafilme, estatal que cuidava da produção de cinema do país, no lançamento mercantil no Brasil. Carlos Augusto Calil, presidente da empresa na era da estreia de “O Ósculo”, em março de 1986, afirma que a estatal unicamente adiantou recursos ao filme para a sua distribuição, recuperando o investimento na cobrança de 25% da renda das bilheterias nacionais.
“Babenco era um diretor que tinha capacidade de arregimentar produtores privados no Brasil e no exterior”, diz Calil. “Ele podia dispensar o financiamento da Embrafilme na coprodução, mas não podia perfurar mão da estrutura e dos recursos da empresa na distribuição no mercado interno.”
Hoje professor da USP, ele também afirma que “O Ósculo da Mulher Aranha” é brasiliano. “Um filme é considerado pátrio no Brasil, na França, Espanha, Argentina, Itália etc. se o produtor majoritário for uma empresa pátrio. A HB Filmes [produtora fundada por Babenco] é uma empresa brasileira.”
O financiamento privado rendeu discussões na era do Oscar. No dia da premiação, um editorial da Folha, chamado O Brasil no Oscar, defendia que a trajetória internacional do filme de Babenco provava que o cinema do país precisava se desvincular do governo. “É uma prova grandiloquente da desnecessidade da subvenção do Estado —leia-se Embrafilme— para que o cinema pátrio produza obras de qualidade e se consolide em definitivo, tanto no mercado interno porquê no exterior.”
O editorial também defendeu a produção porquê brasileira, dizendo que o filme de Babenco respirava uma atmosfera reconhecível ao país. “A sensação dominante junto ao testemunha, na verdade, é a de que está assistindo a uma fita pátrio que foi, simplesmente, dublada para a língua inglesa.” Na quarta-feira seguinte, 26 de março, a foto de William Hurt com o Oscar estampou a primeira página do jornal.
A publicidade da era deitou e rolou na participação do filme na premiação. “Quatro Oscars com teia de aranha”, estampou a companhia aérea Vasp em um pregão na Ilustrada no dia do evento. “Oscar, você merece um ósculo”, escreveu dois dias depois a loja de departamento Sandiz em outra peça no caderno, parabenizando a Ateneu por premiar um filme brasiliano pela primeira vez.
O pregão dos finalistas do Oscar daquele ano ocorreu em 4 de fevereiro, mas as indicações de “O Ósculo da Mulher Aranha” acabaram ofuscadas por um vestimenta grave envolvendo cinema na mesma data: a repreensão ao filme “Eu Vos Saúdo, Maria”, de Jean-Luc Godard. Pressionado pela Igreja Católica, Sarney vetou a exibição do filme de Godard, considerado blasfêmia por transpor a história de Maria, mãe de Jesus, ao termo do século 20.
O objecto foi manchete da edição da Folha de 5 de fevereiro de 1986, além de tema de um editorial, de pilar do logo diretor de Redação Otavio Frias Rebento e de uma entrevista com o próprio Godard. As quatro indicações do filme de Babenco foram noticiadas em 6 de fevereiro, em reportagem que citava o filme porquê coprodução Brasil-Estados Unidos.
O filme que ninguém queria
Além da dupla meão de atores, a outra tributo estrangeira fundamental foi a campanha de divulgação. Pelas mãos dos publicistas Bruce Feldman e Harry Clein, o filme foi um dos primeiros casos bem-sucedidos de uma obra independente no Oscar.
“As campanhas do Oscar envolviam muito menos partes que hoje em dia”, escreveu Feldman em um cláusula de opinião do The Hollywood Reporter, em 2016. “Não havia consultores de prêmios para nos guiar. Nós improvisamos e aprendemos no caminho.” O publicista citou porquê decisivo o sucesso de “O Ósculo da Mulher Aranha” nos Estados Unidos, onde faturou US$ 17 milhões (em valores atuais, murado de US$ 50 milhões, ou R$ 294 milhões). No Brasil, foram quase 1,8 milhão de espectadores.
Sete anos antes, quando Babenco começou a desenvolver o projeto, era difícil prever esse sucesso. O financiamento independente foi a solução porque ninguém na indústria tinha interesse em produzir o longa.
“Foi o filme em que mais ouvi ‘não’ na minha vida”, diz Francisco Ramalho. “Ele foi apresentado para tudo que era distribuidor e produtor. Todos odiavam a história. Se falava muito de uma cena do roteiro, que foi para o filme, em que o Molina limpa as fezes do colega, que tem uma diarreia. Os estúdios achavam aquilo um paradoxal, diziam: ‘Nunca vai passar, eliminem isso’.”
Antes disso, Babenco já havia sofrido para conseguir os direitos de adaptação do livro. O diretor passou o ano de 1981 negociando com Manuel Puig, o responsável, que vivia no Rio de Janeiro e que desde o primórdio nutria ódio por ele.
O redactor resistia à teoria de ver o livro apropriado por Babenco por considerá-lo um oportunista, incapaz de se relacionar com os temas gays da história. O sucesso de “Pixote” (1980), filme anterior do diretor, nos Estados Unidos só piorou essa sensação —em cartas a amigos, Puig chamou o longa de grosseiro. O negócio só aconteceu porque o produtor, David Weisman, conhecia o redactor e alinhou as partes.
Mas as tensões continuaram durante toda a produção. Na biografia “Manuel Puig and the Spider Woman”, a autora Suzanne Jill Levine afirma que o redactor criticou o roteiro em diversas ocasiões, não gostou do trabalho de Hurt porquê Molina e odiou o tom naturalista da adaptação. “Eu não palato do filme e eu não palato de você. Eu não sei porque você está me incomodando”, disse Puig em sua última conversa com Babenco, na era do lançamento.
Outra dor de cabeça foi encontrar o tradutor de Molina, o varão gay recluso com o revolucionário Valentin. O veterano Burt Lancaster, logo na fita dos 70 anos, manifestou interesse pelo papel, mas ele teve um problema no coração e não se entusiasmou pelo roteiro final.
Babenco considerou logo fazer o filme com Paulo José, até que William Hurt apareceu no radar. O ator ligou para o cineasta da Finlândia, onde filmava, e pediu para ler o roteiro.
“O Héctor e eu estávamos na mansão dele em um domingo quando tocou o telefone, apitando uma relação internacional”, lembra Ramalho. “Aí ele atendeu e começou a expressar: ‘No, no money, no money’. Aí ele cobriu a boca do telefone e me contou que tinha um rosto que dizia que queria fazer o filme. Só que o Héctor achou que era o John Hurt, que a gente tinha visto no ‘O Portal do Paraíso’, e não o William Hurt.”
A escalação de Sonia Braga foi muito mais fácil. Acostumada desde cedo aos papéis principais, a atriz brasileira queria na era um trabalho menor.
“Quando terminei ‘Gabriela’ [de Bruno Barreto, lançado em 1983], tomei a decisão de não participar porquê protagonista no próximo filme”, diz à Folha. “Eu queria uma participação pequena, nem que fosse um dia de filmagem. Assim, teria mais tempo com a equipe, que é uma das partes mais prazerosas de fazer cinema. Foi quando Babenco me convidou para participar do seu filme.”
Sonia a princípio faria unicamente uma cena, porquê a namorada de Valentin, mas sua participação cresceu nas filmagens, a ponto de viver três personagens —também foi a protagonista dos filmes contados por Molina ao companheiro de cubículo e a Mulher Aranha do título. Ela foi indicada a melhor atriz coadjuvante no Mundo de Ouro de 1986 pelo trabalho.
“Uma vez que a participação da minha personagem tinha aumentado, concordamos que, por uma questão de lógica, a ‘mulher’ do filme dentro do filme deveria ter o rosto da namorada. A experiência foi fascinante, pois estávamos vivendo porquê as personagens de um outro filme. Vivíamos aqueles momentos porquê pura fantasia.”
Ao contrário de Babenco, a atriz caiu nas graças de Manuel Puig. Segundo sua biógrafa, o responsável via em Sonia Braga o retrato do glamour, mas também da pequena humilde brasileira, uma bela definição para seu trabalho no filme.
Produção aos trancos e barrancos
“O Ósculo da Mulher Aranha” seguiu aos trancos e barrancos, com a produção se virando para solucionar incontáveis problemas. Ramalho cita porquê exemplo as cenas do filme de era que Molina reconta para Valentin. Enquanto no livro as histórias se baseiam em vários longas da Hollywood dos anos 1930 e 1940, a adaptação teve que produzir uma trama do zero, pois não tinha os direitos dos títulos pensados por Puig.
Disso saiu um negócio com a Gaumont, produtora francesa que topou financiar essas filmagens em Paris. A parceria caiu dias antes de Babenco embarcar. Agora sem verba para filmar fora do país, decidiu fazer essa secção da história em São Paulo. O arquiteto Felipe Crescenti ajudou a recriar a capital francesa no filme, e o resultado enganou até mesmo o logo diretor artístico do Festival de Cannes, Gilles Jacob.
“Quando acabou a primeira sessão do filme em Cannes, ele veio falar com a gente e disse: ‘Mas vocês passaram cá, filmaram em Paris e não nos informaram!’”, afirma Ramalho. “Nessa hora, o Héctor e eu olhamos um para o outro e só conseguimos responder que não quisemos perturbar.” William Hurt foi eleito o melhor ator do festival gálico, em maio de 1985.
Babenco ainda passou por momentos difíceis na vida pessoal durante o filme. Na pós-produção, ele se divorciou da galerista Raquel Arnaud e iniciou tratamento contra um cancro, que se arrastaria por muitos anos.
A despeito de tudo isso, segundo Myra Babenco, filha do diretor e hoje adiante da HB Filmes, ele sempre teve carinho peculiar pelo filme. O sucesso e o Oscar lhe abriram as portas em Hollywood, onde filmou “Ironweed” (1987).
“Ele foi convidado a guiar o Jack Nicholson e a Meryl Streep por um ano em Albany, foi a primeira vez que recebeu um salário para guiar um filme”, diz ela. Ambos os atores foram indicados ao Oscar em 1988 pelo trabalho. Babenco morreu em 2016, aos 70 anos.
Sonia Braga também vê “O Ósculo da Mulher Aranha” porquê um momento decisivo de sua curso fora do país. “Sempre que eu dava entrevistas, citavam ‘Dona Flor e seus Dois Maridos’, ‘Eu Te Senhoril’ e alguns filmes menos conhecidos, que na era chamavam a atenção dos críticos. Com ‘O Ósculo’, eles estavam vendo uma outra versão minha porquê atriz.”
Quarenta anos depois, “O Ósculo da Mulher Aranha” está para voltar aos cinemas. Em janeiro, o Festival de Sundance exibiu uma novidade adaptação, totalmente americana, do livro de Manuel Puig para as telonas, dessa vez fundamentado no músico da Broadway. Jennifer Lopez interpreta os papéis de Sonia Braga no original e também é uma das produtoras da refilmagem.