Bertolt Brecht: Conheça o livro infantil Versos de Bichos – 18/05/2024 – Era Outra Vez

Celebridades Cultura

“O palco não é um herbário nem um museu zoológico com animais empalhados. O ator deve ser capaz de gerar seres humanos.”

Essa frase de Bertolt Brecht, que está no livro “Sobre a Profissão do Ator”, ajuda a explicar algumas ideias do dramaturgo teutónico, as engrenagens do que foi chamado de teatro heróico e os motivos de ele ter se tornado um dos autores mais importantes do século 20 —título que carrega até hoje, embora alguns defendam que sua literatura esteja envelhecendo mal.

Em poucas palavras, suas peças buscam sempre deixar atores e público conscientes e alertas do jogo que se desenrola sobre o palco. No teatro heróico, a plateia não esquece que está assistindo a uma representação. O ator não desaparece uma vez que artista nem cria a ilusão de que se transformou na personagem. Segundo Brecht, “ele imitará outra pessoa, mas não de tal modo ou a tal ponto que o tomemos por ela”.

É aí que entram em cena conceitos uma vez que distanciamento, estranhamento, quebra da quarta parede e a conversa entre atores e público durante a apresentação, por exemplo. Esse é também o terreno de “Versos de Bichos”, livro que reúne poemas para crianças escritos pelo dramaturgo, com ilustrações do brasiliano Marcelo Tolentino.

O distanciamento já começa na toga. Nela, vemos um grupo de figuras humanas com cabeças de animais —ou talvez seja o contrário e estejamos diante de animais com corpos de gente. De qualquer forma, logo inferior do título há uma águia, um elefante, um porco e uma ofídio. Na contracapa, vemos um tigre, um cavalo, uma vaca e um galo. Todos com braços, pernas e jeitos humanos.

As figuras vestem camisetas, usam calças compridas e seguram uns as mãos dos outros, uma vez que se fossem atores no término de um espetáculo, no momento em que agradecem os aplausos. Ou, indo mais além, é uma vez que se dissessem, antes mesmo de o leitor penetrar a edição, que eles são e não são bichos. São também representações, arquétipos, espelhos das nossas relações humanas.

Sim, Brecht faz tudo isso num livro para crianças. Assim uma vez que não subestima a perceptibilidade do testemunha que vai ao teatro, o repórter tampouco menospreza a esperteza do público infantil.

Talvez o mais óbvio seja pensar que esse diálogo entre responsável e espectador-leitor em “Versos de Bichos” apareça na forma de uma conversa direta entre ambos ou de uma quebra na narrativa. Mas não é o que ocorre. A estranheza e o distanciamento produzem suas faíscas de outras maneiras.

Nos poemas, a todo momento somos confrontados com o choque entre os animais e a sociedade humana, na qual eles parecem estar perfeitamente inseridos. A águia, por exemplo, tem embates com críticos. O corvo e o canário discutem a relação entre arte e liberdade. O tatu-bola se torna religioso depois de um desmoronamento. E tem ainda o cavalo, para quem deixo as próprias palavras de Brecht:

“Era uma vez um cavalo/ que vivia sem embalo,/ pra corrida era muito parado,/ angustiado perante a carroça, mudou de lado,/ tendo portanto político se tornado./ É agora excelentíssimo e prezado.”

Tudo é e não é. Porquê diz o posfácio do livro, os poemas lembram as fábulas versificadas do Iluminismo e os bestiários medievais, mas ao mesmo tempo são uma sátira contundente do mundo do século 20 —e também do século 21, que está pleno de políticos que mais parecem cavalos parados. É nesse espaço fronteiriço que a literatura de Brecht floresce.

As ilustrações de Tolentino ajudam a gerar esse efeito. Nas páginas internas, os animais perdem as formas humanas que tinham na toga. Mas, uma vez que recomenda o dramaturgo, eles não formam um “museu zoológico com animais empalhados”. Muito pelo contrário.

A estranheza das imagens nasce de representações que conseguem ser tanto científicas quanto surrealistas. Os animais são anatomicamente perfeitos, mas poderiam ter saído de um sonho. Carregarem um quê de loucura. Ao mesmo tempo, são bichos e não são bichos.

O ilustrador dá ainda uma dica visual extra. As páginas são tomadas por dois insetos que não estão nos textos: as formigas e as abelhas —sobretudo estas últimas, que voam pelas páginas em diferentes escalas, entre o protagonismo e o esconde-esconde.

Não custa lembrar que as duas espécies são animais sociais, formam colônias e, mais do que isso, compõem um tropa de trabalhadoras. São assim uma vez que nós, seres humanos.


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Folha

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