Bienal de arte islâmica dribla censura com carga política

Bienal de arte islâmica dribla censura com carga política – 04/05/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Um pedaço do jardim, recortado num metro quadro extirpado da terreno, é saliente aos céus, um rasgo no tecido verdejante ofertado em sacrifício. Do pavimento, ninguém vê as folhas e flores lá no cimeira, só o mastro que separa a terreno firme dessa redondel etéreo.

O pilar é a mensagem, a medida do que aparta a vida pedestre do paraíso, intervalo de tudo o que nos isola ou blinda, reles mortais, da grande formosura invisível. Já diz o Alcorão que Deus criou o firmamento e a terreno e tudo o que está no meio.

Esse caminho do meio, talvez tudo o que se possa invocar de vida real, espasmo entre promanação e morte, é a base desta Bienal de Artes Islâmicas, a segunda da história, em Jeddah. E o trabalho da dupla Joana Hadjithomas e Khalil Joreige é a mais perfeita, senão literal, sintoma desse concepção.

Os libaneses, nomes centrais da arte de um país marcado por guerras e tragédias desde sempre, foram óbvios na ilustração do tema da mostra, mas não por isso menos potentes. Estamos, enfim, debaixo das tendas do idoso aeroporto restrito aos peregrinos destinados a Meca, um deserto na Arábia Saudita hoje retalhado pelos avanços da especulação imobiliária à sombra de outra vaga diplomática, que visa o “soft power” nas artes visuais uma vez que saída do atoleiro petrolífero, indústria que sustenta uma ditadura violenta, longe de ser sexy uma vez que são suas novas galerias de arte reluzentes.

Nos bastidores da exposição, organizada pelo egípcio Abdul Rahman Azzam, pelo ruandês Amin Jaffer, pelo britânico Julian Raby e pelo saudita Mohannad Shono, está, de indumento, um esforço nítido de pintar outro quadro de um país onde monarcas mandam fuzilar seus desafetos, à tendência medieval, mulheres não podiam guiar automóveis até oito anos detrás e gays nem sequer podem subsistir ainda hoje.

Tudo são flores, só que não. Vemos pétalas estraçalhadas, carbonizadas ou mortas em várias das obras. É uma visão mais colorida da veras, mas não menos tétrica, oferecido que sustenta a inesperada voltagem política de uma mostra a princípio muito podada.

Na instalação da jordaniana Raya Kassisieh, retrato do que parece ser a morte na certa, enormes rosas negras metálicas brotam de um pântano leitoso. Perto dali, Flanco Younis, do Kuwait, cultiva numa estufa as flores dizimadas da Filete de Gaza, rosas, crisântemos e cravos. São as vítimas mais improváveis da morticínio em curso no território. A artista preserva aquilo que não existe mais —a guerra interrompeu a exportação dessas flores palestinas e cortou mais um via de renda para quem já não tem zero.

O nipónico Takashi Kuribayashi, lembrando aqueles que ainda têm alguma coisa, sufoca uma árvore com pilhas de barris de petróleo, numa instalação que leva o público a observar toda a desgraça ao volta do cimeira de uma plataforma escura que tapume a vegetal. Tudo dói.

E tudo mal se equilibra. O italiano Arcangelo Sassolino ancora seu retrato do mundo atual num grande disco de petróleo, um pintura circundar recluso à parede da galeria enroupado por uma grossa categoria de óleo industrial. À medida que a coisa gira, o líquido toma as feições de um grande mar preto buliçoso e vai vazando pelas beiradas. É uma vez que sangue vertido numa guerra pela sobrevivência.

Não é zero estranha essa teoria de movimento circundar uma vez que metáfora para a vida e a morte neste que é o lugar mais sagrado do islamismo, sintoma religiosa que tem seu vértice no movimento dos fiéis em torno da Caaba, um voragem de fervor místico que marca a jornada rumo a Meca.

Um dos momentos de contraste e diálogo mais belos de toda a mostra, o disco da morte, ou da vida, de Sassolino gira diante de um mural desenhado sobre uma parede circundar, só traços pretos sobre o fundo branco. A obra monumental do gaulês Abdelkader Benchamma abraça sete antigos pilares resgatados de uma mesquita, estruturas de conchas do mar típicas da costa saudita, fragmentos que talvez chegassem à praia daquele oceano de petróleo que vemos rodar logo ali.

Um minúsculo ímã provoca o mesmo movimento numa sala perto dali. No trabalho do saudita Ahmed Mater, o pequeno cubo preto metálico põe em marcha uma imensidão de partículas de ferro ainda menores, um turbilhão que roda em torno do meio num estabilidade de forças, entre atração e repulsa.

Outro vórtice inflama o trabalho da taiwanesa Charwei Tsai, um esboço sobre vidro transparente em que duas ondas de traços rodam em direções opostas, um furacão prateado que remete à expansão cósmica. É sua resposta a um prato de cerâmica de mais de milénio anos encontrado em Samarcanda, no coração da antiga Rota da Seda no atual Uzbequistão, obra emprestada do Louvre agora na mesma galeria, em que uma matrícula em sarraceno diz que a tolerância é amarga de início, mas depois se torna mais gula que o mel.

É uma prelecção em falta no mundo atual, mas não deixa de ser um sopro de esperança. Os círculos, nessa mesma levada minimalista, vão se multiplicando. E os traços, antes preto no branco, vão se tornando cada vez mais transparentes nas obras dessa fileira, talvez uma menção à subida ao paraíso que atravessa os sete céus da cosmogonia muçulmana até chegar àquele mais cristalino, mais perto de Deus.

Essa transparência atinge seu auge na obra do britânico Asif Khan, uma reinterpretação do Alcorão em que o texto sagrado é escrito com ouro sobre mais de 600 folhas de vidro sobrepostas. Os ensinamentos ganham corpo límpido nessa escrita que se multiplica, se dissolve e invade o espaço da galeria num jogo de sombras e reflexos, a termo divina tornada espectro luminoso.

É o mesmo efeito da arquitetura da mostra, obra da firma holandesa OMA, liderada por Rem Koolhaas, arquiteto vencedor do Pritzker muito solicitado pelas ditaduras do Oriente Médio. São estruturas de tecido branco translúcido, que abraçam as obras nas galerias ou destacam sua presença uma vez que fortes raios luminosos que se estendem em vertigem até o teto.

Do lado de fora, numa galeria ao ar livre, o trabalho de Lucia Koch, raríssima presença latino-americana na mostra, também modula a atmosfera. São grandes painéis de tecido variegado e translúcido, finíssimas cortinas, que balançam no vento e enchem de cores o espaço exposto à luz duríssima do deserto. É uma vez que se a artista arquitetasse um novo prisma, tão belo quanto sintético, através do qual podemos enxergar de outro jeito a vida, aquilo muito no meio entre o inferno e o paraíso.

O jornalista viajou a invitação da Bienal de Artes Islâmicas

Folha

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