Bill Viola Retratava Vertigem Do Mundo Em Sua Videoarte

Bill Viola retratava vertigem do mundo em sua videoarte – 14/07/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Um varão entra na sala escura, vazia, a não ser pela presença de um televisor e o revérbero de uma câmera no espelho. Ele se senta diante da lente, olhando nos nossos olhos, e grita até perder a voz. Depois é a imagem que se perde, quando ele enfia o dedo na fita que grava a própria performance, travando as engrenagens do registro em vídeo. Ele some num turbilhão branco, o quadro riscado, a TV fora do ar.

Bill Viola, um dos pioneiros da videoarte, morto na semana passada, sintetizou nesse autorretrato radical, um de seus primeiros trabalhos, os pilares de sua vasta obra audiovisual. O americano, porquê são Tomé incrédulo diante das chagas de Cristo, punha a mão na substância física que armazena a imagem, uma denúncia de sua concretude para além da luz que brilha na tela, das ondas sonoras que se perdem no espaço.

Em “Tape I”, trabalho do início da dez de 1970, Viola já deixava evidente que o terreno onde pisa é o da imagem tão vaga e efêmera quanto pétrea, tal qual um afresco na parede de uma catedral.

Não são gratuitas as alusões à iconografia cristã nem as lembranças dos episódios que animaram os renascentistas também em procura, há cinco séculos, da mesocarpo da imagem. Viola foi um estudioso aplicado dessas composições antigas, entendendo porquê poucos a qualidade cinematográfica dessas pinturas que traduziam, porquê que num único fotograma, a violência de uma narrativa visceral, o promanação e a morte da ação congelados numa tela estática capaz de erigir uma sensação uno de movimento —o cinema antes do cinema, o vídeo antes do vídeo.

Em seus trabalhos mais antigos, a textura rudimentar da imagem em fita magnética, a baixa definição da tecnologia da quadra, ganha o primeiro projecto. Viola parecia seduzido com a natureza irreal do real, o mundo retratado com o hiperrealismo da câmera portátil que, no entanto, sumia diante dos olhos.

Era uma arte de ponta, construída na crista da vaga de uma invenção que revolucionaria a fabricação de imagens, mas que em última instância, no examinação mais de perto, com os dedos das mãos, não passava de um borrão. Viola retratava, no fundo, a vertigem de um mundo que tenta se enxergar em foco, mas todo esforço parece ser em vão.

Um filme do final da dez de 1970, “Chott el-Djerid (A Portrait in Light and Heat)” ilustra muito isso. São miragens, vultos de construções, carros, caminhões, gente, captados no meio do deserto do Saara. Viola construiu ali uma ópera de fantasmas errantes, formas sem definição que aos poucos se deixam ver para sumir em instantes na vastidão de areia de um horizonte infinito, cegado pela própria luz.

Nesse sentido, o artista sempre operou na contramão da evolução dos instrumentos que usava. Se as câmeras foram ficando mais sofisticadas ao longo dos anos, a definição cada vez mais afiada, Viola buscava nas falhas e limitações de suas lentes o mais significativo dos elementos de sua obra, a suspensão do peso do real.

O artista se consagrou porquê o arquiteto de um sorvedoiro plástico, um responsável que exaltou a desorientação supra da ordem, apegado ao caos e à instabilidade tão pouco afeitas ao revérbero de um espelho. É o tremor porquê espinha dorsal de um trabalho que nunca se deixou ler de modo estático, o movimento porquê agente perturbador e ao mesmo tempo revelador.

Em entrevistas, ele costumava lembrar um incidente da puerícia em que caiu num lago e quase se afogou. Debaixo d’chuva, ele dizia ter visto a coisa mais bela do mundo, um sonho azul e pleno de luz, porquê imaginou o paraíso, e a sensação de flutuar sem peso. A chuva, com chuvas torrenciais construídas em estúdio ou mesmo presente em retratos de personagens submersos, nunca abandonou sua obra, ao ponto de ele invocar a imagem em movimento de seus vídeos de chuva elétrica.

Ele revisitou o traumatismo de um quase afogamento noutro de seus trabalhos mais potentes à quadra. “The Reflecting Pool”, também da dez de 1970, mostra um varão que caminha em direção a um espelho d’chuva e pula, mas a imagem é congelada no salto. Lá está sua figura suspensa, paragem no ar, enquanto a superfície da chuva inferior dele se agita, vestígio inegável de que um pouco aconteceu ali.

É o avesso de Narciso, tema clássico da pintura. No lugar de contemplar a própria formosura, é o movimento que se mostra em primeiro projecto, um libido de fuga, sem rosto. Não vemos mais que uma silhueta petrificada, que logo desaparece diante de o protagonismo da chuva em movimento, a tal chuva elétrica que foi o fio condutor da obra do artista.

Viola chegou a ser atacado pela sátira quando seus trabalhos perderam essa radicalidade dos tempos primordiais do vídeo, de efeitos visuais toscos e imagens turvas, e ganhou os traços grandiloquentes de verdadeiros blockbusters em museus do porte da Tate, em Londres, ou o Guggenheim de Bilbao.

Numa dessas exposições, seu vídeo criado para uma montagem da ópera “Tristão e Isolda”, em que um varão parece flutuar rumo ao firmamento banhado por uma cascata, foi mostrado junto de obras de Michelangelo, o que muitos viram porquê um pouco tão datado quanto o rabino renascentista. Na catedral mais importante de Londres, Viola também criou o próprio altar, com imagens de mártires castigados por terreno, incêndio, ar e chuva.

O artista gostava de lembrar um ditado da filosofia taoísta que prega que o promanação não é um início e a morte não é um termo. Da mesma forma, promanação e morte muitas vezes apareceram em seus trabalhos lado a lado, porquê o tríptico que mostra uma mulher dando à luz uma rapaz e noutra tela a sua própria mãe no leito de morte, no que parece uma versão em vídeo da estarrecedora série de desenhos do modernista Flávio de Roble, que retratou a lápis a mãe morrendo.

Seus filmes também não têm início nem termo. Estão em eterno looping, porquê as águas agitadas que ele gostava de retratar. Viola foi o opífice de tempestades radicais, mesmo que às vezes atravessadas pelo verniz de falsa sofisticação que lambuza o mundo da arte, em que o numerário fala mais cimalha.

Num trabalho de dez anos detrás, um grupo de pessoas é surpreendido por um dilúvio, ondas que invadem o quadro encharcando tudo. Ele voltava mais uma vez, já mais perto da morte, ao promanação de seu próprio universo estético, aquele lago que podia matar e que era também a coisa mais bela que ele já tinha visto.

Folha

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