O Brasil é um país tão enamorado pela democracia que boa secção da população e da sua escol política considera admissível que seja oferecido um golpe de Estado para salvá-la. Tem tanto horror e ódio à ditadura que considera razoável suprimir violentamente o Estado de Recta para evitar a ditadura do Poder Judiciário.
A proposta de “concluir com a democracia para salvar a democracia” não é uma pilhéria de Carnaval, infelizmente. É somente mais uma evidência de nossa capacidade de alojar e cevar crenças contraditórias.
Quem disse que 42,2% dos brasileiros acham que as investigações judiciais contra Bolsonaro são uma perseguição política injusta foi uma pesquisa Atlas Intel da semana passada, feita no rescaldo da operação Tempus Veritatis; 40,5% divergem.
Curiosamente, a mesma pesquisa indicou que 46,5% acreditam que Bolsonaro planejou um golpe de Estado. E que, se o presidente tivesse enunciado um estado de sítio para limitar os poderes do STF e convocar novas eleições, 36,3% da população o apoiariam, enquanto 41,3% não o fariam.
Essa dinâmica sugere que, embora as pessoas estejam convencidas de que Bolsonaro planejou um golpe de Estado, essa percepção não é considerada tão grave a ponto de justificar investigações e processos. É pura perseguição política.
No cerne da questão, está o vestuário de termos uma profunda devoção pela democracia enquanto ela é em nossa cabeça uma nebulosa de ideias e valores. Uma vez que noção, a democracia é porquê paixão de mãe, crianças meigas, crepúsculos e veleiros ao poente —objetos de encantamento e reverência.
Assim, zero é mais mobilizador do que os apelos para proteger a democracia ou os lamentos que proclamam sua perda iminente. Nesse sentido, quimeras porquê “a ditadura do Judiciário” ou “o fascismo que está aí”, muito porquê teorias da conspiração, porquê “a fraude eleitoral”, cumprem as mesmas funções: emocionar as massas, provocar um sentimento de ultraje e justificar qualquer ação a partir desse ponto.
Eu aprendi ainda menino na escola que a Revolução havia salvado a pátria do comunismo. Se o golpe bolsonarista não tivesse fracassado, uma novidade geração teria aprendido porquê o mito salvou a democracia dos “ditadores de toga” e dos “ladrões” que teriam vencido uma eleição fraudulenta. A democracia precisou, novamente, ser resgatada dos seus inimigos.
Os conspiradores que se reuniram com Bolsonaro para edificar “um projecto B” ao processo eleitoral democrático falavam de uma suposta fraude em curso porquê se estivessem mencionando a parede ou a mesa sob seus braços. Tratavam-na porquê um tanto concreto, palpável, indiscutível, mesmo que, porquê admitiram, não tivessem meios de comprová-la. Era uma questão de fé.
A sinceridade da crença ou a conveniência da crença não importam, porém, pois todos os “considerandos” da minuta do golpe apontavam para o dogma compartilhado: a democracia precisava ser protegida das urnas do TSE.
No bolsonarismo, democracia está vagamente relacionada à vontade do povo depositada no líder carismático, autorizando-o a governar porquê queira em seu nome.
E pelo tempo que for necessário enquanto o vínculo orgânico entre o povo e o seu líder perdurar. Métodos para medir e medir a real vontade popular, expressa em votos, são considerados problemáticos, pois é sabido que as elites do poder trabalharão para não perder o poder e irão certamente trapacear.
Em teoria política, acabei de descrever não uma democracia, mas uma autocracia de base populista. Mas uma vez que muitos estiverem convencidos de que democracia é isso, e de que tudo mais é ataque e usurpação do poder do povo, começa-se a entender por que golpes de Estado para salvar a democracia se tornam uma proposta admissível.
Da mesma forma, compreende-se por que, no universo mental do bolsonarismo, a democracia liberal é uma senão. Os três poderes (para que três se o líder escolhido poderia governar melhor sozinho?), as obrigações de que o Executivo preste contas e responda por suas decisões (deixem o varão trabalhar), a partilha de prerrogativas, os constrangimentos dos princípios e direitos fundamentais (porquê assim não se pode prender quem labareda o líder de pequi roído?), zero disso faz sentido para eles.
Da democracia, gostam muito, mas não dos constrangimentos que ela impõe, das obrigações de transparência e prestação de contas, do rito de eleições regulares e livres, da liberdade de se divergir de quem governa. Tudo na democracia lhes é um estorvo, exceto a teoria de democracia, pela qual são capazes de tudo, até de um golpe de Estado.
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