A protagonista de “Boulder” nutriz a solidão de uma forma quase selvagem —seu sobrenome, o título do livro, é o nome oferecido às rochas isoladas do sul da Patagônia cuja origem ninguém sabe ordenar.
Por isso, ela fica sem reação quando a mulher que nutriz, Samsa, pede que tenham um fruto juntas. “Quão louco devia ser quem teve a teoria de edificar as pirâmides? Ou de fechar alguém em um foguete e enviá-lo para as estrelas? Não era tanto quanto ela. Ter um fruto é um projeto teratológico”, narra.
Mesmo assim, a protagonista embarca nele. Submetida a um processo de inseminação sintético, Boulder dá à luz e seu desespero não cede. Samsa é uma mãe amorosa e prática, a “diva das boas decisões”, enquanto ela se sente uma escrava.
A autora do romance, a espanhola Eva Baltasar, 45, conta que, enquanto mãe, se identifica com ambas as personagens. “Somos as duas”, resume, emendando que é com a indômita protagonista, e não com sua companheira, que a maioria das mães que a abordam dizem se sentir mais próximas.
“Boulder”, recém-lançado pela Dublinense, é o primeiro livro de Baltasar a transpor no Brasil. Forma, com “Permafrost” e “Mamute”, um tríptico sobre mulheres de alguma forma apartadas da sociedade. Todos são narrados em primeira pessoa —a editora gaúcha também comprou os direitos das duas outras obras e planeja publicá-las no ano que vem.
O primeiro, “Permafrost”, começou a tomar forma por volta de 2015, quando Baltasar, portanto uma poeta já reconhecida na Espanha, passava por um momento conturbado na vida pessoal. Na quadra, um psicólogo propôs a ela que escrevesse uma autobiografia curta, de poucas páginas, porquê tirocínio terapêutico.
“Mas me entediei e comecei a mentir”, narra a escritora. Foi, assim, substituindo a sua voz pela de uma personagem que aos poucos se revelava, que ela criou uma mulher lésbica sem papas na língua que viaja pelo mundo em fuga das convenções sociais.
Baltasar conta que é essa convívio cotidiana com essas personagens que guia o seu processo criativo. Sua escrita é intuitiva, e suas criações, figuras sobre quem vai descobrindo novas informações a cada dia. “Se soubesse porquê um romance termina, não o escreveria.”
Nesse processo, envolve-se laboriosamente com as palavras, buscando, assim porquê no seu fazer poético, as composições mais precisas, as imagens mais vívidas. Em “Boulder”, esse trabalho é visível no artesanato das metáforas e no ritmo ritmado do texto —Baltasar lembra que sua tradutora francesa certa vez disse a ela que estava se debatendo para reproduzir a estrutura de um trecho que, no original, ela tinha escrito em versos alexandrinos sem perceber.
A parceria com tradutores vem rendendo frutos. Foi uma versão de “Boulder” de Julia Sanches para o inglês que levou Baltasar a ser finalista em uma das maiores premiações literárias do mundo, o Booker Internacional.
Outra marca da escritora presente tanto na sua prosa quanto na trova é a aproximação que promove entre a sensualidade e o bestial, o animalesco. Em “Boulder”, por exemplo, abundam cenas em que a protagonista e narradora, uma cozinheira “de bandejão”, nas suas palavras, associa sexo e comida.
Em determinado momento, encara uma mulher porquê se estivesse diante de “um festim” —”poderia comê-la com a parcimônia com que se comem as uvas”. Em outro, descreve um grupo de lactantes porquê uma reunião de “mamilos de todas as medidas, alguns pequenos porquê bagas, outros amplos e escuros porquê pão”. “Agora entendo por que a Samsa não perde nenhum desses encontros. São orgias”, aponta.
“Transpor de uma zona de luz que é cômoda me interessa”, diz Baltasar. Nesse sentido, seus personagens seriam espelhos dela mesma e permitiriam à autora se reconciliar com as partes mais obscuras de sua personalidade.
Essa conexão talvez explique por que, até o momento, a obra da espanhola tenha sido habitada quase sempre por figuras femininas. A escritora se relacionou sobretudo com mulheres ao longo de sua vida, inclusive amorosamente.
É uma propriedade que, para Baltasar, pode mudar à medida que sua própria vida se transforma —ela hoje tem porquê parceiro um varão, por exemplo.
Já o tema da maternidade, presente em maior e menor proporção em todo o tríptico, não deve voltar a ser abordado tão cedo. “Não é que eu tenha me cansado de grafar sobre isso, mas faz anos que lido com essa etiqueta.”
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