Acompanhamos durante a última semana a deportação de imigrantes pelo governo dos Estados Unidos para o Brasil, Colômbia e México e toda a questão que se seguiu. O Itamaraty errou ao concordar o transporte e o pouso alheado de cidadãos algemados nas mãos e nos pés? E o presidente da Colômbia fez notório ao ortografar a missiva indignada? São perguntas inócuas, na minha visão.
Isso porque as consequências que se sucederam em cada caso justificam opiniões variadas que, mas, não enfrentam a contento uma questão médio na relação entre os países: a subordinação econômica e tecnológica dos países latino-americanos do sistema político dos Estados Unidos.
Com o chegada das redes de socialização digitais, a disparidade tecnológica agrava, sem marcha à ré, a ponto de um país continental, uma vez que é o Brasil, depender toda, ou quase toda, informação em redes, incluindo páginas oficiais, de plataformas americanas que, uma vez que se vê, obedecem ao humor democrata ou republicano na Vivenda Branca.
Outrossim, mesmo com o Brasil leal a esse sistema, os conflitos ainda assim emergem, pois o país é um dos maiores mercados de usuários do mundo. O Brasil, inclusive, é líder global de influenciadores digitais no Instagram, segundo recente pesquisa Nielsen.
Nesse contexto, seria impensável uma atividade política e econômica deste tamanho não ser regulada. Mas, se essa epílogo já sofre resistência por si, os projetos de lei que tentam progredir na dimensão esbarram na polarização.
Existe uma saída? Venho pensando sobre isso com vocês nesta poste e, no texto de semana passada, escrevi que uma provável solução seria a geração de um polo big tech brasílio. Foi uma provocação.
Eu lá sabia que, na semana seguinte, a China lançaria seu aplicativo de lucidez sintético e causaria um prejuízo enorme a essas empresas americanas? Não fazia teoria. Todavia, ver na prática alguma coisa que me parece evidente a se fazer em termos de política pública me trouxe mais noção da valia da material.
Levando a provocação adiante, no texto anterior fiz referência a uma empresa pública vernáculo de redes sociais. Isso pode despertar incômodos em quem se pensa patriota. Porém, é preciso expor que ser patriota é muito dissemelhante de amar o seu país.
A título de exemplo, jurar a bandeira —seja do Brasil, dos Estados Unidos, ou de ambos—, ou mesmo chegar ao ponto de chorar de emoção na presença de uma mando americana, é fácil. Agora, levantar uma empresa vernáculo de tecnologia em redes sociais é alguma coisa que exige comprar incômodos “anti-Brasil” e “pró-trumpistas”.
Aí complica para o patriota. Pois se faz sentido para boa secção dos americanos o lema “fazer a pátria grande de novo”, um Ariano Suassuna talvez responderia “fazer esse país soberano, finalmente”. Dois lemas conflitantes.
Some-se a isso o mito da democracia racial inscrito na identidade brasileira. Cá, se alardeia que qualquer coisa pode ser resolvida numa roda de samba no Leblon, duas caixas de uísque em Brasília, um hotel em São Paulo, muita camaradagem e mulheres servindo. O Biden é nosso “brother”, o Trump é o nosso “mito”. Ambos querem, ao mesmo tempo, nosso muito. Eu entendo que essa imagem colonial possa ser comovente para muitos, entretanto não há ilusão que resista à evidência dos fatos.
Voltando ao fio da meada, iniciativas brasileiras tampouco parecem uma força suficiente para a redondel global. É melhor que zero, por notório. E os anúncios do atual governo federalista em fabricar uma lucidez sintético própria são muito bem-vindos.
Mas essas empresas americanas vão além do monopólio de lucidez sintético e gozam do monopólio das plataformas de redes sociais. Outrossim, contam com décadas de antecedência, capital colossal e ajuda governamental. Tamanha é a letargia histórica dos políticos brasileiros em tomar uma atitude nesse sentido, que talvez seja tarde demais.
O jeito é não desistir e edificar esperançando, uma vez que disse Paulo Freire. Escoltar a “tríplice deportação” me relembrou a identidade entre os países que foram obrigados a receber os aviões e ainda mais desrespeitados enquanto recebiam. Quem sabe o incidente encoraje uma federação transnacional, “amefricana”, na esteira do que foi pensado por Lélia Gonzalez, para a construção de polos big techs que não sejam em dólar? Brasil, México, Colômbia e quem mais se dispuser.
Para finalizar, uma reflexão. Quando indagado sobre qual seria o porvir da América Latina, Eduardo Galeano afirmou: “Eu não sei, mas sei o seu duelo. O duelo é: vamos nos transmutar na triste caricatura do Setentrião? Ou vamos oferecer ao mundo um mundo dissemelhante?”.
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