“brasil Não Se Enxerga No Espelho”, Diz Artista Negra Rosana

“Brasil não se enxerga no espelho”, diz artista negra Rosana Paulino

Brasil

Com quase 60% da população reconhecida porquê negra, o Brasil é um país que não se enxerga no espelho e está muito moroso em discussões sobre a questão racial. O pensamento é da educadora e artista visual negra Rosana Paulino, que coleciona trabalhos de destaque dentro e fora do Brasil ligados ao racismo, posição da mulher negra na sociedade e marcas deixadas pela escravidão.

Para a artista, a instrução visual é absolutamente necessária para a emancipação das pessoas. “Se você só vê uma pessoa ou um determinado grupo ocupando determinados postos, só vê esse grupo sendo retratado de maneira negativa, você não precisa falar, você não precisa grafar. Você não precisa ler sobre isso: a imagem já está te condicionando”, diz.

Rio de Janeiro (RJ), 05/08/2024 – A artista Rosana Paulino ministrará curso na Cátedra Pequena África, na Fundação Getulio Vargas (FGV), no centro do Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Rio de Janeiro (RJ), 05/08/2024 – A artista Rosana Paulino ministrará curso na Cátedra Pequena África, na Fundação Getulio Vargas (FGV), no centro do Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Rosana Paulino conversou com exclusividade com a Filial Brasil – Tomaz Silva/Filial Brasil

A artista e intelectual que até dois meses detrás fez grande sucesso com a exposição Amefricana, no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba), é uma das titulares da Cátedra Pequena África, lançada leste ano pela Instauração Getulio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro. Ela ministrará o curso livre Registro, Memória, Construção Visual e Ensino.

Rosana Paulino conversou com a Filial Brasil sobre esse pioneirismo acadêmico que direciona para o “empretecimento” da liceu e sobre a obra dela – que tem a indignação e o antirracismo porquê matérias-primas, além de assuntos escopo de debate contemporâneo, porquê a relação entre comunidades tradicionais e mitigação de mudanças climáticas.

Confira os principais trechos da entrevista exclusiva:

Filial Brasil: Qual é a proposta desse curso? É uma ressignificação de imagens ligadas à escravidão?
Rosana Paulino: São encontros. Eu pretendo investigar algumas imagens, porquê essas imagens vão ajudar a produzir um sítio social para essa população negra, e porquê os artistas contemporâneos brasileiros desse momento estão quebrando esse sítio simbólico social que foi formado para a população através da imagem.

Agora, não dá para entrar em um ponto tão complicado assim sem entender o que aconteceu antes. Porquê se forma o sítio simbólico para uma determinada população. Porquê se dá o processo de embranquecimento e de apagamento. Mas só dentro da dimensão da imagem, que é o campo em que atuo.

Logo não é em relação à escravidão, porque quando a gente vai falar da população negra, a gente sempre pensa na escravidão, mas tem todo um conjunto de geração, tem toda uma ação dessa população negra que não está simplesmente ligada à escravidão, porque se não a gente reduz demais a situação. Reduz o sujeito preto porquê se fosse somente dependente desse ato da escravidão, e a população negra é muito mais que isso.

Filial Brasil: Você é uma artista e também uma educadora. A arte é uma instrumento de instrução?
Rosana Paulino: Sem incerteza nenhuma! Trabalhei porquê educadora por 30 anos. Palato do ofício. Eu só saí da dimensão porque minha agenda não permite mais. A instrução, principalmente a instrução visual, é absolutamente necessária para a emancipação dos sujeitos. A imagem tem um poder que é muito pouco discutido no Brasil, e é uma coisa que me preocupa muito. Essas discussões que deveriam ter sido postas em cima da mesa para a gente entender porquê é que você condiciona uma população. Porquê é que você define locais sociais. A imagem é extremamente poderosa nesse sentido.

Muitas vezes, a gente não precisa falar zero. Mas se você só vê uma pessoa ou um determinado grupo ocupando determinados postos, só vê esse grupo sendo retratado de maneira negativa, você não precisa falar, você não precisa grafar ler sobre isso, a imagem já está te condicionando.

Filial Brasil: O que você espera porquê resultado dessas conversas, plantar sementes para novas trabalhos de texto antirracista?
Rosana Paulino: Eu quero é isso: colocar o ponto em cima da mesa para que outros venham discutir isso. É um pouco que tem que ser profundamente discutido em um país onde quase 60% da população já se coloca porquê negra. É um contra-senso que nós não tenhamos discutido isso ainda.

A gente tem que pensar sobre isso: que país nós queremos? O país que nós queremos passa pela construção em uma imagem também. Tudo está para ser feito no Brasil ainda. Por incrível que pareça, em 2024, tudo ainda está para ser discutido nesse sentido no Brasil.

Nova bandeira do Museu de Arte do Rio, na Praça Mauá, leva imagem de mulher negra, criada pela artista Rosana Paulino.
Nova bandeira do Museu de Arte do Rio, na Praça Mauá, leva imagem de mulher negra, criada pela artista Rosana Paulino.

A bandeira do Museu de Arte do Rio, na Rossio Mauá, é geração da artista Rosana Paulino – Fernando Frazão/Filial Brasil

Filial Brasil: Essa cátedra da FGV é pioneira. Você está sendo pioneira em um processo pioneiro (Rosana Paulino é a primeira das titulares a desenvolver atividades na cátedra. As outras duas titulares são a professora e cantora lírica Inaicyra Falcão e a poeta e ensaísta Leda Maria Martins). Olhando para daqui a dez anos, você espera que esse tenha sido um caminho para empretecer a liceu?
Rosana Paulino: Precisa. Novamente eu vou trazer essa questão do demorado brasílico em relação a essas discussões. Já fui muito mais chamada fora do Brasil do que dentro. Estou cansada de ser chamada fora do Brasil para perfurar semestre, fazer lição peculiar, lição sublime de ano letivo em universidades. Cátedras, eu ainda não peguei fora do Brasil, mas todo ano recebo pelo menos um invitação para perfurar um semestre.

Cá no Brasil, a gente não faz. Espero que seja o primeiro, que realmente a cátedra chame atenção para essas discussões, para que ajude a empretecer e, principalmente, para que ajude na produção de novos trabalhos que venham discutir esse ponto. Isso é para ontem!

Filial Brasil: Você teve exposições no exterior, porquê em Buenos Aires e nos Estados Unidos. Qual a percepção que você tem do público que visitante as suas obras?
Rosana Paulino: Eu não esperava tanta receptividade fora do Brasil porque achava que era um tema muito regional. O que me surpreendeu foi porquê a exposição foi acolhida fora do país. O Malba esteve referto praticamente todos os dias. Foi uma coisa meio absurda que aconteceu no Malba. A própria equipe do museu comentava comigo porquê estava referto.

Aconteceu uma coisa muito linda no Malba. [Contrariando] aquela história de que não existe negros na Argentina, as pessoas negras começaram a ir, principalmente as mulheres negras, e começaram a propor rodas de conversa no meio da exposição. Eu fiquei completamente surpresa. Isso mostra o alcance que pode ter uma exposição. Isso que eu procuro sempre com o trabalho, levantar discussões, trazer conversas, colocar o ponto na mesa.

Filial Brasil: Sua obra fala sobre o sofrimento que envolve a diáspora africana, transmigração em tamanho forçada e dolorida, racismo que tenta silenciar a presença negra no Brasil. Você vislumbra que é verosímil que a população afrodescendente possa cicatrizar essa memória?
Rosana Paulino: Essa cicatrização não depende tanto, talvez, da população negra. Depende da população que se considera branca porque isso não se faz de um único lado. Querendo ou não, esse é um país preto. O Brasil é um país onde o que rege a questão da cor é a autodeclaração, os critérios do IBGE. Eu desconfio que isso vai fustigar em 65%. É uma população negra, uma cultura negra, é um país que vai ter a oferecer para o mundo justamente as diferentes culturas que estão cá. Logo o Brasil se assume porquê é ou a gente vai continuar jogando no lixo, todos os dias, aquilo que a gente tem para oferecer para o mundo.

O Brasil talvez seja um dos principais países a ter a chave para essa questão climática. Populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas, são eles que têm o conhecimento para tirar o varão desse profundeza, desse buraco. A gente não se reconhecendo porquê tal, a gente não consegue solução nem para os nossos problemas nem para uma coisa muito maior. Logo, não diria cicatrização, acho que a gente tem que colocar o ponto sobre a mesa.

Essa população precisa e merece compensações, se não a gente vai pensar em uma cicatrização de qual maneira? Sem limpar a ferida para depois explodir lá na frente? Logo eu não diria cicatrização dessa ferida da escravidão, a gente tem que botar em cima da mesa, perfurar e ver quais são as soluções para isso. Porquê é que a gente vai limpar essa ferida, acomodar as bordas desse tecido que ainda estão separadas, porquê é que a gente vai fazer essa sutura?

Filial Brasil: O Brasil está muito moroso nessa assepsia?
Rosana Paulino: Muito. O Brasil está extremamente moroso nisso e é muito resistente. O que me choca mais é a resistência do país em reconhecer isso. E o trabalho cá foi tão muito feito que boa secção da própria população negra não reconhece. Nós temos uma movimentação absolutamente gigantesca a ser feita nesse sentido.

Rio de Janeiro (RJ), 05/08/2024 – A artista Rosana Paulino ministrará curso na Cátedra Pequena África, na Fundação Getulio Vargas (FGV), no centro do Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Rio de Janeiro (RJ), 05/08/2024 – A artista Rosana Paulino ministrará curso na Cátedra Pequena África, na Fundação Getulio Vargas (FGV), no centro do Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Rosana ministrará o curso na Cátedra Pequena África, na Instauração Getulio Vargas – Tomaz Silva/Filial Brasil

Filial Brasil: Fora o seu trabalho especificamente, de quais outras formas o Brasil pode seguir nisso?
Rosana Paulino: Valorização da cultura no universal, isso é absolutamente necessário. Combate ao racismo religioso. Isso é também uma coisa absurda. O Brasil é um país que corre o risco de perder a sua própria identidade por conta do racismo religioso. Porque não se pode olvidar nunca que a cultura é diretamente ligada às manifestações religiosas, à música negra, a música brasileira, a de qualidade, pela qual o Brasil é divulgado mundialmente. A música brasileira é diretamente ligada à música de terreiro. É do terreiro que vem o samba. É do samba e de outras manifestações musicais negras que vêm do terreiro que a gente vai ter a base músico para a cultura brasileira. Durante muito tempo a cultura músico foi o destaque do Brasil no mundo, e o Brasil joga isso fora. Quando você não respeita as religiões de matriz africana, a gente vai muito além de uma questão simplesmente religiosa, a gente chega no cerne do que é ser brasílico.

As coisas estão ligadas. Cá no Brasil, a gente tem um hábito de ver cada coisa em uma caixinha. Mas está tudo entrelaçado, eu não posso pensar a cultura brasileira sem pensar em revelação religiosa. É impossível. O que o Brasil faz, muitas vezes, abafa certas condições culturais religiosas, traz de fora um material de quinta [categoria] e coloca isso porquê se fosse uma matriz vernáculo, o que não é. E aí joga no lixo aquilo que poderia ter para oferecer para o mundo.

Porque senão a gente vai continuar nisso, uma imitação extremamente mal feita do Oeste, e sem levantar a cabeça, o que é pior. Uma imitação que aceita tudo quanto é trincheira que vem de fora, não produz, e com uma capacidade absurda de produção. E principalmente a liceu. A liceu no Brasil faz isso o tempo todo. Tem que empretecer a liceu e descolonizar essa liceu. A liceu no Brasil, tem hora que dá vergonha: aceita tudo de fora e não propõe zero.

Filial Brasil: No dia do lançamento da cátedra, a escritora Conceição Evaristo disse que os pensadores negros não têm que ter singeleza.
Rosana Paulino: Eu concordo em gênero, número e proporção com a Conceição. Não temos que ter singeleza. Temos é que nos colocar no mundo. O que acontece, o que valida muito a produção cultural no Brasil é a liceu. Uma liceu totalmente tomada por questões eurocêntricas e que não tem pulso para se rebelar. Vai aceitando de maneira passiva. É de uma passividade que me irrita profundamente.

Junta-se a isso o histórico da população negra, o modo porquê as culturas de matriz populares são relegadas ao segundo projecto… isso é um caldo de sujeição a outras culturas – você não se colocar diante do mundo. Somos um país com um potencial contra-senso. Só que se a gente não se assume porquê país, a gente não sai desse buraco. É necessário, sim, que a gente não tenha singeleza.

Filial Brasil: Em Samba da Benção, Vinícius de Moraes diz que “pra fazer um samba com venustidade é preciso um naco de tristeza”. No seu trabalho, é preciso ter a memória do sofrimento étnico para produzir obras que sirvam de teor antirracista?
Rosana Paulino: Não. Eu não quero tristeza, quero reparação. É dissemelhante. O povo preto é tão poderoso que consegue trovar e dançar em cima disso.

Filial Brasil: E se trocar tristeza por indignação?
Rosana Paulino: Aí rola. Mas se a gente for por essa tristeza, por esse banzo, a gente não tem escola de samba. Escola de samba para as pessoas negras é um veículo de instrução extremamente poderoso. Eu primícias a ter o meu letramento racial quando eu era juvenil, quando a Mocidade Feliz, lá de São Paulo, fez três enredos sobre a questão negra. O que é o cortejo de escola de samba? Ali não cabe essa tristeza para fazer cultura não, ali a gente põe indignação, a gente abre o ponto e ainda passa cantando.

Filial Brasil: Você já disse que o Brasil não se enxerga no espelho. Não se enxerga ou não quer se enxergar?
Rosana Paulino: Os dois. A escol não quer enxergar. A escol brasileira nunca se viu porquê brasileira. A escol brasileira se vê porquê coitados exilados na América do Sul. Ela não quer se ver porquê ela é. O povo, no universal, muitas vezes tem pressão religiosa, as religiões negras sempre foram demonizadas, isso está diretamente ligado à cultura, e isso vai criando um caldo de desperdício que vai afetar todas as áreas: da cultura ao meio envolvente.

Quem é Rosana Paulino

A artista vive em São Paulo, cidade onde nasceu, em 1967. É doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), profissional em gravura pelo London Print Studio, de Londres, e bacharel em gravura pela ECA/USP.

Porquê artista, se destaca pela produção ligada a questões sociais, étnicas e de gênero. Possui obras em importantes museus, porquê o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), a Pinacoteca do Estado de São Paulo; o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp); Museu Afro-Brasil, em São Paulo; Malba e University of New Mexico Art Museum, no Novo México (EUA). Já expôs em cidades porquê Lisboa, Berlim, Veneza (Itália), Chicago (EUA) e Bruxelas, entre outras.

A Cátedra Pequena África surgiu de uma parceria entre a prefeitura do Rio de Janeiro e a FGV, com a proposta de ser um campo acadêmico para estudo e divulgação de pensadores negros. Possui um recomendação consultivo formado pelos intelectuais negros: Ayrson Heráclito (artista e curador), Benedito Gonçalves (ministro do Superior Tribunal de Justiça), Conceição Evaristo (linguista e escritora), Dione de Oliveira (jornalista e diretora da Faculdade de Informação da Universidade de Brasília (UnB); Jurema Werneck (médica e diretora da  Anistia Internacional), Muniz Sodré (sociólogo e noticiarista), Sonia Guimarães (observador) e Thiago de Souza Apoio (jurista e professor FGV-SP).

De agosto a outubro, a cátedra realizará os ciclos individuais com as titulares, formado pelos cursos livres e roda de diálogos na Livraria Mário Henrique Simonsen. Em novembro, no dia 5, um seminário reunirá as três titulares, quando também serão convidados os participantes do comitê consultivo.

Fonte EBC

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