Caetano Veloso Conta Moedas 21/06/2024 Gustavo Alonso

Caetano Veloso conta moedas – 21/06/2024 – Gustavo Alonso

Celebridades Cultura

Quem é o proprietário do samba? E da Semana de 22? Quem é o proprietário da bossa novidade? E da Jovem Guarda? Essas perguntas podem parecer despropositadas, pois a resposta é óbvia: ninguém é proprietário de um movimento cultural, visto que a cultura brasileira pertence ao povo brasiliano. Mas não é logo que pensam Caetano Veloso e Paula Lavigne.

Eles entraram com um pedido de indenização de R$1,3 milhão depois de a grife vernáculo Osklen lançar uma coleção inspirada no tropicalismo. Caetano e Lavigne demandavam a retirada de lojas físicas e virtuais de toda a coleção Brazilian Soul que trouxesse os nomes “Tropicália” e “tropicalismo”. O violação da Osklen foi não ter pedido ao painho Caetano a devida benção.

O juiz Alexandre de Roble Mesquita concluiu o processo na terça-feira (18) afirmando que Caetano não tem “absolutamente nenhuma exclusividade sobre a Tropicália”. E ainda condenou o baiano a remunerar os honorários e os custos processuais da Osklen.

Espanta que um tropicalista, patrono da polissemia estética e poética e das liberdades políticas durante a ditadura, tenha defendido tamanha brutalidade. O ridículo da proposta fica ainda mais visível quando se transporta a discussão para outros gêneros. Imagine se Zeca Pagodinho quiser se apossar do termo “pagode” e apitar quem pode ou não se vincular ao termo. Poderia Anitta tomar para si o funk e proibir um camelô de lançar um short com o nome do gênero músico impresso no tecido?

Ninguém duvida que o baiano foi o cérebro motor do movimento cultural de maior influência no Brasil desde a Semana de 1922. Mas daí a querer sentar no trono e mandar (e sentenciar) quem pode ou não se associar ao tropicalismo é de um patrimonialismo mesquinho.

A guerra lítico da sociedade contra o painho tropicalista é marco que deve ser contextualizado historicamente. Só por meio da história para compreender uma vez que um gênio brasiliano, quase sempre sensato, tornou-se um contador de moedas patrimonialista.

Durante décadas, os tropicalistas Caetano e Gil não foram os ricos artistas que são hoje. Hippies, sem habilidade para mourejar com finanças, nunca viveram privações, mas tampouco tinham vidas luxuosas. Eram artistas pós-modernos mais interessados nas liberdades e nas desconstruções estéticas do que no vil metal.

Foram as respectivas mulheres Flora Gil e Paula Lavigne que, ao se tornarem empresárias dos baianos, conseguiram com grande valor transformar em cifrões a notabilidade e saudação que ambos tinham na cultura brasileira. No entanto, o sucesso empresarial parece ter subido à cabeça, e tudo passou a ser visto uma vez que resultado potencialmente lucrativo.

O mais icônico momento desta insanidade patrimonialista aconteceu em 2015, quando Caetano engajou-se com sua mulher na militância contra as biografias não autorizadas. A dupla criou o grupo Procure Saber ao lado de Gil, Chico, Milton, Djavan, Roberto e Erasmo Carlos e demandava, além de justa remuneração de direitos autorais, a increpação a livros que não passassem pelo crivo patrimonialista dos artistas. Foram ao Congresso Pátrio, fizeram lobby entre pares e militaram em programas de TV pela increpação prévia a obras sérias, que traziam verdades incômodas, sob o argumento de que biógrafos ficavam ricos a suas custas. Quem dera um país iletrado uma vez que o Brasil desse lucro a quem escreve!

Na estação, Roberto Carlos havia censurado seu biógrafo, Paulo Cesar de Araújo. Em 2007 a justiça havia confiscado a biografia “Roberto Carlos Em Detalhes”, e o cantor pediu, além de indenização, a prisão do responsável. Repito: a prisão! Caetano e Lavigne aderiram à tarifa censora de Roberto, que argumentava que sua biografia era seu patrimônio. Em 2015 o livro de Araújo continuava censurado, e o Procure Saber queria controlar quem poderia redigir livros e, sobretudo, fazer filmes e documentários sobre eles.

Ainda mais grave, Roberto Carlos pediu a proibição do livro “Jovem Guarda: Tendência, Música e Juventude”, obra da pesquisadora Maíra Zimmerman, um trabalho sério de estudo sobre o movimento cultural dos anos 1960 e suas implicações culturais. Caetano apoiou o rei absolutista.

Por termo, os patrimonialistas da MPB foram derrotados em decisão unânime do STF em 2015, que consolidou o entendimento favorável à existência de biografias mesmo não autorizadas. Vale ler o magnífico “O Réu e o Rei: Minha História com Roberto Carlos, em Detalhes”, de Paulo César de Araújo, para um relato detalhado dessa importante guerra da cultura brasileira contra nossos mesquinhos heróis da música popular.

Por tudo isso espanta que Caetano Veloso e Paula Lavigne tenham entrado na justiça contra a Osklen. Não aprenderam zero com tudo o que aconteceu? Triste é constatar que o gênio tropicalista se perde contando cifrões quando seu legado é maior do que qualquer bolada em verba. A rota de Caetano nos tribunais é mais um passo na luta contra a patrimonialização da cultura brasileira. Aos trancos e barrancos, vamos avançando!


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Folha

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