Ajustar um clássico da literatura universal para o cinema ou teatro é um duelo considerável, principalmente quando se trata de uma obra extensa e de “desnorteadora complicação”, uma vez que Sigmund Freud descreveu “Os Irmãos Karamázov”, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881). O ator e diretor Caio Blat, em parceria com o dramaturgo Manoel Candeias, assumiu a tarefa de levar esse clássico do plumitivo e filósofo russo aos palcos, condensando sua narrativa em um espetáculo de duas horas.
Em papeleta no Sesc Pompeia, a versão, que conta com a co-direção de Marina Vianna, opta por focar nos conflitos centrais da história: a relação conturbada entre os irmãos Karamázov (Dmitri, Ivan, Aliocha e Smerdiakov) e seu pai, Fiódor, além de explorar temas uma vez que a fé, a moralidade e a existência de Deus. Essa escolha, embora acertada por proporcionar uma narrativa mais coesa, inevitavelmente sacrifica nuances e subtramas presentes no livro. Ainda assim, o roteiro consegue tomar a núcleo dos dilemas filosóficos e emocionais que permeiam a obra original.
No palco, a estética minimalista criada por Isabela Capeto, com seus belíssimos figurinos e cenários que privilegiam a sugestão em detrimento do realismo, funciona muito muito. Embora faltem elementos visuais que remetam à atmosfera russa do século 19, tão presente no romance, a simplicidade do espaço cênico permite que, nas cenas de maior tensão emocional, os atores e o texto brilhem.
O ritmo dinâmico da produção alterna momentos de intensidade dramática com cenas mais introspectivas. No entanto, em alguns pontos, o espetáculo parece açodar demais, o que pode dificultar a compreensão para quem não está familiarizado com a obra original. A complicação dos diálogos e monólogos exige atenção estável, e nem sempre a montagem consegue lastrar a profundidade do texto com a transparência necessária para o teatro.
Um dos pontos altos da produção é o elenco, que consegue transmitir com maestria a complicação psicológica dos personagens de Dostoiévski, capturando suas contradições e angústias. O trabalho de tradução é particularmente notável nos papéis dos irmãos Karamázov, cada um representando uma faceta dissemelhante da exigência humana: a paixão desmedida de Dmitri (Luisa Arraes), o ceticismo intelectual de Ivan (Caio Blat) e a espiritualidade ingênua de Aliocha (Nina Tomsic). Smerdiakov (Pedro Henrique Müller), o fruto ilegítimo, traz uma presença sombria e servil que adiciona uma classe crucial de tensão e conflito à trama. Babu Santana, no papel de Fiódor, também merece destaque, trazendo à tona a figura patética e ao mesmo tempo repulsiva do patriarca da família.
A obra de Dostoiévski mantém-se extremamente relevante e atual, e a montagem consegue explorar temas uma vez que a luta entre o muito e o mal, a procura por significado em um mundo aparentemente caótico e a complicação das relações familiares. O espetáculo não se furta a enfrentar as questões mais incômodas levantadas pelo romance, uma vez que o famoso capítulo “O Grande Inquisidor”, adequado com uma intensidade quase claustrofóbica. Essa ousadia em manter a densidade filosófica do texto original é um dos maiores méritos da produção.
Três perguntas para …
…Caio Blat
O que o motivou a ajustar e encaminhar ‘Irmãos Karamázov’ para o teatro, e quais foram os principais desafios nesse processo?
O que mais me motivou foi o vestuário de que é inédito, que não tinha nenhuma adaptação de uma obra tão importante. Não tinha uma montagem no Brasil. Isso foi uma das coisas que mais me motivou, queria muito fazer uma adaptação de Dostoiévski e na minha visão só podia ser Karamázov.
Um grande duelo foi tornar o livro, que é volumoso, numa obra objetiva, rápida, pop, dinâmica, que fosse de fácil compreensão e que ao mesmo tempo mantivesse toda a núcleo ali. Eu acreditei muito que, mergulhando na trama dos três dias em que acontece o assassínio do pai [Fiódor] Karamázov, dava para entender todos os personagens, todas as grandes ideias do romance. Pegando essa secção importante da trama conseguimos transformar um romance de quase milénio páginas em uma peça popular.
A montagem foi descrita uma vez que uma ‘ópera rock moderna’. Poderia falar mais sobre essa escolha estética e uma vez que ela se relaciona com a obra original?
Olha que gaudério de gêneros. É um romance, né? Mas na verdade é um folhetim que foi lançado em jornais da era, em episódios. Ao mesmo tempo, o tom é de tragédia familiar, uma coisa meio épica. E a gente tentou transformar em um tanto lírico.
O Dmitri, por exemplo, é um personagem muito lírico, ele fala o tempo inteiro com poesias, com frases de grande efeito. Paga músicos para andarem detrás dele tocando, cantando e ciganas para ficarem dançando em volta dele quando chega na sarau.
Fundamentado nessa imagem, do aristocrata que joga o verba enquanto a margem vem tocando detrás e recolhendo, criamos essa família, esse cenário, e em vez de colocarmos a margem, nossa secção músico separada no palco, colocamos dentro da moradia, dentro da família, interagindo com os personagens e tocando o tempo inteiro ali no meio da cena. A música foi composta pelo Arthur Braganti durante os ensaios de dentro do palco, interagindo com os personagens, portanto a peça tem esse clima de ópera mesmo.
A encenação apresenta uma inversão de gênero em alguns personagens. Qual foi a intenção por trás dessa escolha, e uma vez que ela contribui para a tradução da obra?
Uma vez que todo texto do século 19, a história dos irmãos Karamázov, estruturalmente, também é machista. Os homens são quem tomam as ações e têm as grandes ideias, e as mulheres estão sempre à mercê desses homens.
Achamos que invertendo os gêneros iríamos modernizar um pouco isso, trespassar dessa enrascada de ter os protagonistas homens e mulheres na “função” deles. Por esse motivo nosso elenco todo é muito diverso. A mesma coisa com raça, quer manifestar, não importa se alguém é russo, brasílio, se é empregado, se é aristocrata. Todo mundo faz vários personagens, tem mulheres que fazem papéis masculinos e tem homens interpretando mulheres, assim a gente consegue ressignificar essas figuras e mostrar que o que verdadeiramente importa é o jogo teatral.
Sesc Pompeia – r. Clélia, 93, Chuva Branca, região oeste. Qui. a sáb., 20h. Dom., 17h. Até 30/3. A partir de R$ 21, em sescsp.org.br e nas bilheterias das unidades.