Há três anos o TikTok é parceiro do Festival de Cannes. Patrocínios e uma competição de curtas foram gerados, mas a rede social não conseguiu invadir uma fatia significativa da atenção destinada às sinais tradicionais. O mais perto que chegou do tapete vermelho do Grande Teatro Lumière, até agora, foi nesta quarta-feira (15).
Não da maneira pretendida, porém. O TikTok é, de certa forma, um personagem de “Wild Diamond” –”Diamant Brut” ou “diamante bruto”, no original–, filme da estreante Agathe Riedinger que compete pela Palma de Ouro e abriu as sessões da mostra principal de longas desta 77ª edição.
São várias as menções à plataforma chinesa ao longo do filme, com uma trilha sonora densa e incisiva que com frequência deixa evadir sons de videozinhos publicados nela. Sua protagonista, aos 19 anos, é naturalmente frequentadora assídua da rede, influenciada diariamente pelo que vê ali.
Acompanhamos Liane, interpretada pela ótima e desconhecida Malou Khebizi, uma jovem que vive com a mãe problemática, que a largou num orfanato quando petiz, e com a mana mais novidade, com quem é superprotetora. Morando numa cidadezinha da França e sem muita perspectiva de horizonte, seu grande sonho é ser influencer, lucrar produtos em troca de posts e entrar para um reality show chamado Miraculous Island.
É com uma relação da produtora da atração fictícia que o filme abre, alimentando sua protagonista com um tantinho de esperança. Ficamos, pelas próximas duas horas, na expectativa para saber se ela vai ou não integrar o elenco de boys lixos e gostosonas do programa de pegação.
Não deixa de ser triste ver que os maiores sonhos de Liane se resumem a engolir sapo de celebridades com as quais, é alertada, precisará se envolver sexualmente e fechar parcerias com uma manicure da cidade. Do outro lado, temos Idir Azougli, que constrói uma vivenda para orgulhar o irmão e, quem sabe, atrair a protagonista para a vida inabalável que almeja.
“Wild Diamond” parece escolher um caminho nessa bifurcação. Há patente tom condescendente ao mostrar a vida de Liane, que soa uma vez que o retrato de uma juventude com sonhos perdidos em vídeos de 30 segundos. Ela chega a ir a um cirurgião plástico para testar silicones para as nádegas, depois de ver uma influenciadora recomendar o procedimento, apesar de já ter as curvas do corpo muito avantajadas.
Com suas microrroupas, a maquiagem pesada e as unhas enormes, cobertas por pedrinhas de sumptuoso falsas, Liane vai escancarando o machismo enraizado em todos, dos garotos de sua geração –que pensava-se estar salva desse mal– à conselheira do governo que tenta encontrar um tarefa para ela.
Mas não. Ela quer participar de um reality show para mostrar seu eu real, diz a certa profundidade, enganando a si própria, mas não o público. O trabalho de olhar de Khebizi é digno de nota, capaz de transmitir todas as angústias e frustrações não verbalizadas de uma personagem na qual o roteiro se aprofunda pouco.
“Wild Diamond” provavelmente não será um destaque da seleção de Cannes deste ano, mas ajuda o festival a satisfazer um papel importante –o de lançar para o mundo jovens talentos cheios de potencial. Tanto Khebizi quanto a diretora, Agathe Riedinger, são diamantes a serem lapidados, não há incerteza.
Numa primeira estudo, pouca coisa liga leste primeiro filme da mostra solene ao segundo, apresentado também nesta quarta, “The Girl with the Needle”, ou “a pequena com a agulha”. Um se empenha em pintar e encher de clarão os figurinos de sua protagonista, enquanto o outro a afunda na sobriedade do preto e branco de um filme de quadra, no pós-Primeira Guerra.
Conforme leste segundo filme progride, porém, vai se costurando uma relação. A escolha por parear “Wild Diamond” e “The Girl with the Needle” é acertada, já que leste também segue uma jovem –agora de 23 anos– desiludida e castigada por uma sociedade machista. Ambas também sonham em subir socialmente, inconformadas com a veras cruel imposta a elas.
Mas o que o filme de Riedinger tem de promissor, o do sueco Magnus von Horn tem de frustrante. O longa tenta transitar por diferentes gêneros, mas nunca de forma bem-sucedida. São várias histórias dentro de uma, deixando o testemunha confuso com o que está vendo.
Inspirado em uma história real, acompanha Karoline, papel de Vic Carmen Sonne, uma jovem que trabalha numa fábrica têxtil e, sem notícias do marido enviado à guerra, acaba se envolvendo com o proprietário do lugar. Ela engravida, mas a futura sogra trata de enxotá-la, e ela se vê sozinha com um bebê.
Nisso, seu marido, com o rosto distorcido pela guerra, reaparece, e entra em cena também uma prestativa senhora que se propõe a ajudá-la, procurando uma família para hospedar a petiz. Com esses personagens afetados, misteriosos e, cada um à sua maneira, ameaçadores, Von Horn constrói habilmente um terror atmosférico, que infelizmente descamba para um melodrama vazio.
“The Girl with the Needle” se torna, assim, uma experiência arrastada e cansativa, que não deve invocar a atenção do júri presidido por Greta Gerwig, que por sua vez pode ver privança entre “Wild Diamond” e a sua própria filmografia feminina e feminista.