Figurinos anacrônicos, cenários graciosamente decadentes, certa teatralidade e premissas que, por trás do terreno, escondem uma vocação para a fantasia dão ao cinema de Alice Rohrwacher. Essa singularidade que a fez se primar, rapidamente, no cenário europeu.
Porquê contos de fadas modernos, os filmes da italiana tratam de temas pesados, em próprio da miséria, mas o fazem sob o verniz da inocência, por um olhar de encantamento quase infantil. Não é dissemelhante em “La Chimera”, exibido na Mostra de Cinema de São Paulo depois de passar pelo Festival de Cannes, no ano pretérito.
Por seu trabalho mais maduro, que mostra uma consolidação das bases de seu cinema, Rohrwacher não foi condecorada, ironicamente. A diretora de 41 anos, finalmente, embolsou os prêmios do júri, por “As Maravilhas”, e de roteiro, por “Feliz uma vez que Lázaro”, em edições passadas do evento.
“La Chimera” é, também, seu projeto de maior ansiedade internacional, já que mistura ao italiano das cenas o francesismo, o inglês e até o português. Levante graças a Carol Duarte, brasileira que chamou a atenção da cineasta em “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, e que posteriormente o invitação para um teste virtual embarcou no avião, fez quarentena e começou a ensaiar.
O preparo precisou ser dinâmico, contou ela durante o Festival de Cannes, mas nem por isso menos prazeroso. Duarte já arranhava um pouco de italiano, graças à companheira, que tem raízes no país, e aperfeiçoou o linguagem com a ajuda da sogra.
No processo, contracenou com Isabella Rossellini e Josh O’Connor, que ganhou projeção uma vez que o logo príncipe Charles de “The Crown” e de quem virou amiga –”Josholino!”, exclamou ela efusiva ao vê-lo andando pelo hotel em que se hospedaram em Cannes, antes da reunião no tapete vermelho.
“A gente não teve tanto tempo para ensaiar, logo nossa função, juntos, foi a de entender a cabeça da diretora, o que ela queria”, disse ela à reportagem na ocasião. “E ela tem um cinema muito privado, não existe outra Alice. É uma linguagem muito específica, sendo dramática sem ser dramática, cômica sem ser cômica. A gente esteve sempre numa risco tênue.”
Rohrwacher não buscava necessariamente uma brasileira para a personagem de “La Chimera”. A cineasta queria uma estrangeira que fosse capaz de sugerir um caminho para o porvir –o nome Itália não é à toa, finalmente–, e viu em Duarte o jeito relaxado, determinado e quase cômico que precisava.
Itália é uma jovem que estuda quina lírico e auxilia a idosa vivida por Rossellini nas tarefas domésticas. Elas só não a levam à exaustão pela tendência da personagem em enxergar o lado positivo de tudo e todos –a ingenuidade em meio à dureza, repetidas no cinema de Rohrwacher. No palacete onde as duas vivem, goteiras o transformam num atestado de falência daquela sociedade, por mais que ela se agarre a um pretérito glorioso.
E é uma procura desesperada pelo pretérito que move a trama, tanto por culpa de uma desilusão amorosa que assombra o protagonista de O’Connor, chamado por todos de “o inglês”, quanto pelo ofício do qual se ocupa. Junto com um grupo lugar, também às margens, ele procura riquezas sepultadas pelos etruscos, séculos detrás, naquela região entre a Toscana e a Úmbria.
Os “tombaroli”, uma vez que são chamados, são um problema real daquela região da Itália, na qual Rohrwacher cresceu e buscou inspiração. “Todos os homens, praticamente, saíam à noite para escavar e, no dia seguinte, se reuniam no bar para falar do que encontraram”, relembra ela.
“São histórias incríveis, que sempre me fascinaram quando garoto. Não pelo vista proibido dessa atividade, mas porque eles estavam violando lugares sagrados. Essas pessoas estavam olhando para o pretérito de uma forma novidade, e isso me impressionou muito.”
Esse olhar para trás parece impregnado de melancolia, assim uma vez que acontecia em “Feliz uma vez que Lázaro”. O porvir, por outro lado, não parece exatamente animador, o que põe o personagem de O’Connor numa encruzilhada –de um lado, a moradia quase mal-assombrada de Rossellini, de outro, nenhuma perspectiva para alguém que acabou de deixar a prisão.
Há ainda perceptível realismo mágico. Não é o diploma de arqueologia do protagonista que o capacita a encontrar os túmulos etruscos que ele e sua gangue querem saquear, mas uma espécie de superpoder, um mal-estar que o toma de súbito sempre que caminha por cima de um desses mausoléus centenários, uma vez que se fosse um detector de metais humano.
“O que me toca nos trabalhos da Alice é a natureza de raconto de fadas deles. Mas chamá-los disso também é uma vez que subestimá-los, porque eles são filmes políticos. Remete à tradição do cinema italiano, a filmes que não fazemos mais. Mas a Alice evoca isso, é uma vez que se ela fosse de outra era”, diz O’Connor.
Estética e tematicamente, também, a obra de Rohrwacher parece perdida no espaço-tempo. De tantas referências, seus filmes se tornam lúdicos, e são quase uma vez que uma visitante a um brechó. É que o concepção da passagem do tempo a fascina, diz a cineasta, a ponto de torná-lo, muito no fundo, o grande protagonista de sua obra.
“O cinema é ressurreição”, resume ela.