Eram os primeiros meses de 1970, e Cassiano desfilava seu “black power” reluzente por São Paulo quando conheceu outro peludo chamado Paulo Ricardo Botafogo, de vista e ideologia hippie, fã de Marvin Gaye uma vez que ele. Nos alto-falantes de uma lanchonete, o locutor da rádio anunciava a novidade música de Tim Maia, que deixou seu novo colega boquiaberto.
Ao som de “Primavera (Vai Chuva)”, a dupla pagou a conta, mas o verba de Cassiano acabou. Ele estava sem lugar para dormir e pediu abrigo a Botafogo. Voltava de uma excursão, quando viu calças de varão no varal de sua mulher e não quis conversa. Também fez uma revelação. “Olha, essa música é minha, mas por obséquio não fale para ninguém.”
Dita uma vez que um pedido singelo, a frase se tornou uma maldição para Cassiano. Responsável de sucessos na voz de Tim Maia e Ivete Sangalo, o paraibano fascinou músicos, virou “sample” e rima dos Racionais MCs e gravou discos até hoje cultuados. Mas morreu há quatro anos uma vez que um gênio esquecido —a dimensão de seu talento é um sigilo guardado por quem conviveu e trabalhou com ele.
Isso não quer proferir que Cassiano tenha sido um incógnito. Bastião do movimento black e precursor do soul brasiliano, angariou uma legião de fãs, vem sendo redescoberto por novas gerações e acumula milhões de “plays” no streaming. Sua obra que veio ao mundo, no entanto, é só uma parcela do que produziu de maneira informal durante toda a vida —e que segue inédita até hoje.
Cassiano, morto aos 78, deixou um disco de inéditas incompleto, gravado em 1978 e hoje em posse da Sony. Também tem gravações “demo” feitas nas décadas de 1980 e 1990 que há anos circulam entre fãs e amigos. Isso fora o que William Magalhães, líder da margem Black Rio, labareda de “baú do tesouro” —as dezenas de fitas cassete com gravações caseiras nunca ouvidas.
“Ele nunca parou. Só parou para o mundo”, diz Magalhães, que herdou do pai, Oberdan, não só a margem que reativou nos anos 2000, mas a amizade e o reverência de Cassiano. “Todo dia ele tocava piano, passeava com gente simples, trocava teoria. Era tão puro que às vezes a gente duvidava da indulgência dele.”
O tal baú, ele diz, contém “coisas que fizemos em estúdio, composições dele tocando em moradia, ideias, tudo inédito”. “E só coisa boa. Cassiano nunca fez zero ruim, musicalmente falando. Com ou sem margem, arrasava. A voz, o jeito de imaginar. Era uma genialidade nunes.”
Esse material está na moradia que Cassiano dividiu com a mulher, Cássia, e a filha, Clara, no término da vida, no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Há também registros escritos de memórias, recortes de revistas e jornais, filmagens de performances no palco e em moradia, diversos instrumentos e até desenhos e colagens que ele costumava fazer.
A viúva conta que o marido saía às vezes para o bar e para conversar na rua, mas “não era um varão de multidões”. “Gostava de música e queria trabalhar o tempo todo, não era tanto de atividade social. Mas, se chamasse para o estúdio ou para o palco, esse era o grande sonho. Ele queria estar entre os músicos.”
Por volta de 2016, na reunião com o presidente da Sony, Paulo Junqueiro, para negociar o lançamento do disco de 1978, Cassiano estava mais interessado em apresentar o material mais novo que vinha criando. Não se opôs ao lançamento do álbum engavetado, mas suas prioridades eram diferentes daquelas da gravadora, e o papo esfriou.
Desvelado antes desse encontro pelo produtor Rodrigo Gorky, hoje espargido pelo trabalho com Pabllo Vittar, o disco chegou aos ouvidos de Junqueiro, fã enunciado do cantor, que logo se interessou. Kassin, produtor que trabalhou na finalização póstuma do álbum “Racional 3”, de Tim Maia, foi chamado para ajudar.
No primeiro contato com as músicas, ele diz, sentiu que tinha “um negócio enorme na frente”. O produtor conta que o trabalho que ele e Gorky fizeram foi unicamente de “limpar e viabilizar”, além de reorganizar e mixar as músicas, sem edições ou acréscimos. Em sua opinião, o álbum não precisa de muitos retoques para ser lançado.
Segundo Junqueiro, ainda há o que ser feito. “Chamei Cassiano para ouvir, ele se lembrava de tudo, mas concordava que faltava muito. O que existe é uma pré-mixagem e, a partir dela, terminar o disco, caso a família queira finalizar. Na minha opinião, não está terminado. Mas, se a família descobrir que está terminado, tudo muito. Estamos tentando encontrar uma maneira de chegar lá.”
Um dos impeditivos para que o disco perdido de 1978 seja lançado é a falta de créditos aos músicos que participaram das gravações. Claudio Zoli, no entanto, lembra não só que gravou “backing vocals”, mas sabe de vários dos instrumentistas envolvidos no disco. Tinha 14 anos e mal tocava violão, mas Cassiano vislumbrou um horizonte para ele na música.
“A gente se reunia numa moradia lá em Jacarepaguá”, diz Zoli. “Era aquele clima meio Novos Baianos, todo mundo dormindo lá, ensaiando. Nos reunimos para gravar esse disco da CBS, que não saiu, e o Cassiano fazia um ‘esquenta’ antes de entrar em estúdio. Ficava tocando violão, falando sobre simetria.”
Há alguns registros desses momentos de “esquenta” e também de estúdio feitos por Paulo Ricardo Botafogo, que é fotógrafo. Ele acreditava, sem muita certeza, que eram imagens da gravação de “Cuban Soul”, disco de Cassiano do qual fez a foto da revestimento, gravado há 50 anos. Mas é bastante improvável que Zoli, nascido em 1964, tivesse unicamente 11 anos nas imagens.
Produtor que trabalhou com Tim Maia e foi colega de Cassiano, Carlos Lemos se mudou da Philips, hoje Universal, para a CBS, hoje Sony, na segunda metade dos anos 1970. Pelas fotos, ele diz ter certeza que as gravações aconteceram no estúdio Haway, que era alugado pela CBS. Ele também confirma as identidades dos músicos lembrados por Zoli. São eles os guitarristas Paulinho Roquette, Paulinho Guitarra, Beto Cajueiro e Paulo Zdan, além de Dom Charles no piano e Paulo César Barros no grave.
Quem também corrobora as lembranças de Zoli é Paulo Zdan, médico de Cassiano, de quem se tornou grande colega e foi letrista do disco “Cuban Soul”. Morto há um ano, ele deu uma entrevista a Christian Bernard, que preparava um documentário sobre Cassiano —o filme acabou não autorizado pela família.
A reportagem ouviu uma pré-mixagem desse disco de 1978, que destaca a faceta mais suingada de Cassiano. É um registro coeso de 12 faixas, mais funk do que soul, com vocais simultâneos cheios de inocência e um flerte com a música disco daquela era. Para Kassin, é um registro “mais pop”. “Se tivesse saído na era, teria feito sucesso”, ele diz.
Junqueiro, da Sony, concorda que as faixas mantêm uma conformidade, mas que não é verosímil saber se isso se manteria caso Cassiano continuasse o trabalho no álbum. “Não tem nenhuma música que eu imagino que o Cassiano não botaria no disco. Talvez ele colocasse mais músicas. É um disco mais para cima, mas para ser mais dançante faltam arranjos.”
Clara, filha de Cassiano, lembra que o pai não tinha boas memórias da era que fez esse disco. “Não sei o que ele estava sentindo, mas não era um momento feliz para ele”, ela diz. “Ele já não se via mais tanto uma vez que aquele Cassiano de 1978. Mas hoje reconheço a prestígio de lançar. Acho que todo mundo merece, mesmo que ele não tenha ficado tão empolgado assim com a teoria.”
As gravações foram pausadas depois que Cassiano teve tuberculose e passou por uma cirurgia para a retirada de uma segmento do pulmão. Mas as pessoas ouvidas pela reportagem também relatam um hábito ordenado do artista —demorar para finalizar seus trabalhos, ao ponto de as gravadoras desistirem de bancar as horas de estúdio e os músicos caros, pondo os projetos na geladeira.
Bernard, o documentarista, também afirma que foi logo em seguida as gravações desse álbum da CBS que Cassiano rompeu com Paulo Zdan e ficou 40 anos sem falar com ele. “Zoli depois tocou na margem do Cassiano, no show ‘Cassiano Disco Club’. Mas na verdade não tocou. Só ensaiou e, uma vez que nunca faziam shows, ele e o Zdan saíram e montaram a margem Brylho.” A dez de 1980 marcou o período de maior dificuldade para Cassiano, que passou a gravar esporadicamente, parou de lançar álbuns e enfrentou dificuldades financeiras.
Cassiano nasceu em Prado Grande, na Paraíba, e no término dos anos 1940 se mudou para o Rio de Janeiro com o pai, que ganhava a vida uma vez que pedreiro e era também um seresteiro e colega de Jackson do Pandeiro. O menino acompanhava, tocando cavaquinho desde pequeno.
Conheceu Amaro na Rocinha, onde morava, e formou com ele e o irmão, espargido uma vez que Camarão, o Bossa Trio, que deu origem à margem Os Diagonais. O potente do trio eram os vocais simultâneos. Chegaram a gravar até para Roberto Carlos. “Ele era um rabi em vocalização. Era impressionante, um talento”, diz Jairo Pires, que foi produtor de diversos discos de Tim Maia e depois diretor de grandes gravadoras.
“Foram pioneiros nessa música negra. Esse tipo de vocalização era muito moderna. Ele já tinha essa coisa no sangue. Por isso que o Tim amava o Cassiano.”
Não demorou até que o lado compositor do artista fosse notado por gente da indústria. Em 1970, ele assinou quatro músicas do primeiro disco de Tim Maia e ainda é tido uma vez que um arranjador informal, por não ter sido creditado, daquele álbum. O Síndico havia voltado dos Estados Unidos impregnado pela música negra americana, e a única pessoa que tinha bagagem suficiente para conversar com ele era Cassiano.
“Cassiano tinha esse dom”, diz Carlos Lemos, que foi de músico a assistente de produção e depois produtor nessa era. “Ele era muito criativo e teve momentos na gravação que ele cantou a esfera de praticamente o maquinação todo. Ele não escrevia, mas sabia o que queria. Praticamente nos três primeiros discos do Tim Maia ele estava junto.”
Dali em diante, o paraibano despontou numa curso solo que concentra nos anos 1970 sua tempo mais influente. São três discos —”Imagem e Som”, de 1971, “Apresentamos Nosso Cassiano”, de 1973, e o mais espargido deles, “Cuban Soul: 18 Kilates”, de 1976, que teve duas músicas em novelas da Orbe. São elas “A Lua e Eu”, o maior sucesso em sua voz, e “Coleção”, que há 30 anos virou hit com Ivete Sangalo, na Margem Eva.
Lemos se recorda de que chegou a dividir apartamento com Cassiano e outros músicos na rua Major Sertório, no núcleo de São Paulo, nos anos 1970. O artista estava enamorado por uma mulher chamada Ingrid, para quem compôs algumas músicas. Era uma era inspirada para o cantor, que em 1975 atingiu sucesso com “A Lua e Eu”, produzida por Lemos e feita ao longo de seis meses.
“Produzir um disco com Cassiano demorava uma infinidade”, afirma Carlos Lemos. “Ele entrava em estúdio, falava que queria assim e assado, chamava os músicos. Quando voltava para o aquário [espaço onde se ouvem as gravações], já tinha outra coisa na cabeça. Era difícil gravar. Você tinha que dirigir uma originalidade excessiva. Ele falava ‘isso pode permanecer muito melhor’, e realmente ficava. Mas quem tem paciência? A gravadora quer vender logo. Mas era nessa núcleo que estava a verdade dele —e também seu sucesso.”
Lemos calcula que, na era em que faziam “A Lua e Eu”, deixaram mais de 20 músicas prontas, mais de 500 horas de gravações em estúdio, uma quantidade de fitas suficiente para encher um cômodo inteiro. Procurada pela reportagem desde o término do ano pretérito, a Universal, que hoje detém o ror da Philips, onde essas gravações aconteceram, não respondeu sobre o paradeiro das fitas.
O macróbio assistente lembra que Jairo Pires, portanto um dos diretores da Philips, ficava desesperado com essa situação. “Ele tinha um temperamento difícil”, diz Pires. “Fora do estúdio, era maravilhoso, um gulosice de indivíduo, mas, quando entrava no estúdio, era complicado.”
Cassiano era principalmente preocupado com o ritmo e a química entre grave e bateria, com os quais gastava dias e mais dias fazendo e refazendo. Claudio Zoli diz que ele gravava cada segmento da bateria separadamente para depois juntar, o que para Ed Motta era “uma invenção da bateria eletrônica antes de ela subsistir”.
Lemos conta que Cassiano tinha uma precisão detalhista. “Ele tinha uma visão de matemática potente, de uma vez que as frequências combinavam. E era o grande sigilo de tudo, porque nem sempre o resultado da sonoridade é o que está na imaginação. Só vi coisa parecida em João Gilberto. E também com Tim Maia —que não respeitava quase ninguém, mas respeitava Cassiano.”
Outras duas pessoas ouvidas pela reportagem lembraram o pai da bossa novidade para falar de Cassiano. Uma delas é Claudio Zoli, que destaca sua qualidade uma vez que compositor. O outro é Ed Motta, que foi colega do paraibano e tentou diversas vezes viabilizar sua curso. “Ele era o João Gilberto do soul brasiliano”, afirma. “Mas, você imagine, um João Gilberto que não é adoptado pelos tropicalistas. Simples que ele tinha um gênio difícil, mas e a Maria Bethânia não tem?”
Cassiano chegou a integrar a mesma gravadora de Bethânia e Caetano Veloso, a Philips, mas no braço da firma devotado à música mais popular, a Polydor. Lemos, o assistente de produção, diz que o paraibano, na era, era humilde e não tinha rancor, mas não dava tanta prestígio aos baianos, “porque sua qualidade músico era muito superior à de todos eles”.
“Ainda tinha uma rivalidade interna dentro da Philips, criada naturalmente. Poucos sabem que quem sustentava toda a estrutura da gravadora para os baianos serem os caras eram os artistas da Polydor. A Philips gastava e tinha nome, amava os baianos, mas eles nunca venderam uma vez que Tim Maia. Vendiam coisa de 50 milénio cópias”, diz o produtor.
Os desentendimentos com a indústria foram gerando mais problemas com o passar do tempo. Paulo Ricardo Botafogo conta que Cassiano recusava oportunidades de brotar em programas de TV, dar entrevistas e ser fotografado. “Não sei se foi sacaneado, mas ele era um face muito fácil de enganar. Era muito puro, quase uma petiz”, afirma.
“Cassiano ganhava verba e distribuía entre os músicos. E imagine o que ele passou. Preto, pobre e nordestino. Ele se achava mal-parecido. Chamavam ele de ‘Paraíba’”, diz Paulo Ricardo Botafogo.
Quando “Cuban Soul” foi lançado, depois das centenas de horas de gravações lembradas por Carlos Lemos, o cantor deixou a gravadora. Há na revestimento do disco um pormenor que, segundo Botafogo, Cassiano interpretou uma vez que uma indireta sutil contra ele —é um espaço entre as sílabas da primeira termo do título do álbum, deixando um “cu” em destaque.
Uma reportagem deste jornal de 2001 retratou a dificuldade de Cassiano para gravar. “Levamos para várias gravadoras, mas nenhuma teve interesse, até por ele estar há muito fora da mídia. Mas sua participação em ‘Movimento’ prova que ele está a milénio, numa tempo criativa. Ele tem umas 150 músicas no baú”, disse William Magalhães na era.
“Movimento”, o disco que marcou o retorno da Black Rio sob o comando do rebento de Oberdan, traz composições, arranjos e a voz de Cassiano, uma vez que a fita “Tomorrow”. É uma das músicas que a dupla trabalhou em conjunto, incluindo uma gravação dela unicamente com o paraibano cantando, além de duas canções já famosas de maneira informal entre fãs e amigos do artista, “Pérola” e “Maldito Celular”. Feitas entre 1993 e 1995, foram gravadas uma vez que “demo” e nunca lançadas comercialmente.
Magalhães já havia tocado teclado e piano com Cassiano alguns anos antes. Foi quando Ed Motta conseguiu convencer um italiano chamado Willy David a bancar um disco do cantor. “Falei que ele era um gênio, o Stevie Wonder brasiliano”, diz. “George Benson era colega desse David e ia participar do disco. Chegou até a ouvir algumas músicas.”
Eles gravaram as “demos” no estúdio de Guto Perdão Mello, no Rio de Janeiro. As fitas em melhor qualidade dessas gravações, nunca lançadas, estariam com David, que nunca mais foi localizado depois de ter ido morar em Cuba. Nem mesmo por Christian Bernard, que o procurou exaustivamente nos últimos anos para seu documentário. Há, no entanto, cópias dessas faixas em qualidade pior com amigos do cantor. “São umas oito músicas inéditas, coisas que ele já tinha guardado por anos”, diz Ed Motta. “Não era um disco pronto, mas tinha qualidade de disco.”
Na segunda metade da dez de 1980, Cassiano passava por dificuldades financeiras até para conseguir o que consumir. Tinha unicamente um violão macróbio, de estrutura quadrada, que o pai fez, ainda na Paraíba, e que a família guarda até hoje. Morava no Catete, no Rio de Janeiro, e costumava gravar em estúdios liberados por amigos nas horas vagas —caso da estrutura do músico e produtor Junior Mendes, na Barra da Tijuca.
Cassiano viveu um breve renascimento artístico na viradela dos anos 1980 para os 1990. Ele se casou com Cássia, aprendeu a tocar piano e fez um show lotado no Circo Voante, registrado em vídeo. Gravou também o álbum “Cedo ou Tarde”, com um repertório de canções antigas, que saiu pela Sony em 1991 e tem participações de Djavan, Marisa Monte, Sandra de Sá e Luiz Melodia, entre outros.
Esse álbum não vendeu tão muito, o que frustrou os planos de gravar material novo, mas, com o sucesso de “Coleção” na voz de Ivete Sangalo, há 30 anos, Cassiano conseguiu comprar um apartamento às margens da lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Praticamente não fazia shows e sobrevivia dos direitos autorais que ganhava com suas composições.
No início da dez de 2000, William Magalhães chegou a viabilizar a gravação de um disco para Cassiano. Diretor da gravadora Regata, Bernardo Vilhena tinha US$ 140 milénio para um álbum de Claudio Zoli, que acabou indo para outro selo. Com isso, decidiu redirecionar todo esse verba ao paraibano.
“Quando Cassiano soube disso, disse ‘US$ 140 milénio é só a luva’”, diz Magalhães. “Ele era muito orgulhoso, queria que as pessoas o tratassem à profundidade que ele se via. Seria o verba para debutar a produzir. A gente conseguiria fazer, mas ele recusou por desculpa dos traumas que tinha da indústria. Quando soube que o verba era do Zoli, ainda se sentiu desmerecido, por ser um discípulo dele. Não tirando o recta dele, mas acho que ele viajou um pouco nesse traumatismo.”
Ao longo das últimas décadas, Magalhães diminuiu o contato com Cassiano, mas eles se reaproximaram no término da vida do cantor. Falaram sobre fazer novos projetos, e o paraibano disse que o líder da Black Rio, que ele admirava por ser um grande músico preto, era uma das poucas pessoas com quem ele aceitaria trabalhar àquela profundidade. “O que eu posso proferir é que o Cassiano ainda vai dar muito tecido para manga”, afirma Magalhães. “O dia que a Cássia furar esse baú dele, eu sou o primeiro da fileira.”
Há muitas razões pelas quais Cassiano não conseguiu deixar uma obra mais volumosa, e elas não têm a ver com o reverência que ele tem até hoje no meio da música. Mas o ícone da soul music brasileira encarava essa devoção com ceticismo.
“Rabi é o moca. Não adianta falar isso. Me bota no estúdio”, ele dizia, segundo Cássia, a viúva. “Era assim. Todo mundo pira nas ideias do face, mas ninguém deixa ele gravar. O empresário André Midani chegou a declarar que as gravadoras devem um disco ao Cassiano”, afirma ela. “Tudo muito, é ‘cult’, é um nicho, mas é um nicho importante e não é tão pequeno assim.”
O último “não” que Cassiano ouviu de uma gravadora talvez tenha sido nos momentos posteriores à reunião de 2016 com Paulo Junqueiro. Depois de falar à reportagem, o presidente da Sony pediu para marcar uma novidade entrevista, em que admitiu ter ouvido o material novo que o paraibano queria lançar e não quis apostar naquelas músicas.
A Sony passava por um período complicado, ele diz. Tinha feito uma renovação em que perdeu muita gente de sua equipe. “Do que ouvi, não fiquei tão fascinado e, quando pensei em fazer discos inéditos do Cassiano àquela profundidade, disse ‘não consigo’. Não tinha estrutura financeira nem emocional.”
Posto isso, ele acrescenta que se arrepende profundamente. “Ajoelho no milho todos os dias. Tive uma oportunidade de ouro nas mãos, de registrar as últimas obras dele, e a perdi. Não tenho nem palavras para pedir desculpas à família, aos fãs e a mim mesmo. Não tenho uma vez que ser mais honesto do que estou sendo. Se gostei ou não, foda-se. Se vai vender para caralho ou não, foda-se.”
Junqueiro se põe à disposição da família para lançar o disco de 1978, diz que tinha seus motivos para fazer o que fez, mas errou. “Se alguém tivesse me descrito essa história, eu ia falar ‘olha que rebento da puta, não gravou as coisas do Cassiano’. Logo, se eu teria essa visão sobre alguém, eu no mínimo tenho que ter essa visão sobre mim também.”
Hoje, Cassiano vive no imaginário por sua produção nos anos 1970 e pelos fragmentos que deixou espalhados em fitas e memórias. Dizia que fazer música era uma vez que o mar —”ondas que vêm e vão, mas nunca estão no mesmo lugar”. Os fãs, por sua vez, aguardam uma movimentação das marés que traga para a superfície pelo menos algumas dessas pérolas submersas.