Em meio ao desespero das enchentes no Rio Grande do Sul, uma imagem marcou milhões de brasileiros tocados com a tragédia. Tratava-se de um cavalo marrom ilhado sob um frágil telhado de uma humilde morada em Canoas, na periferia de Porto Contente. A imagem atualizou o simbolismo do cachorro caramelo que, há alguns anos, uniu a país na resguardo do hibridismo racial que entre humanos não é mais provável.
Posteriormente as chuvas devastadoras, o cavalo foi divisado pelo helicóptero da TV Mundo e seguiu imóvel por três dias em cima do telhado. Devido à pelagem, ganhou o sobrenome de Caramelo e causou comoção nas redes sociais.
O resgate no dia 9 de maio foi transmitido ao vivo no programa de Ana Maria Braga. O bicho teve que ser dopado para não ocasionar acidentes aos bombeiros que o salvaram, que o batizaram de “Valente”. Mas o nome que pegou mesmo foi o das redes sociais e o bicho continuou sendo chamado pela cor.
O resgate de Caramelo foi visto pela primeira-dama, entusiasta da razão bicho. Janja utilizou as redes sociais para comemorar o resgate e gerou polêmica. Whindersson Nunes, um dos maiores nomes da internet brasileira, ironizou a primeira-dama por pegar carona na tragédia, que retrucou, dando ainda maior visibilidade à disputa simbólica pelo cavalo caramelo. O youtuber Felipe Neto e a atriz Giovanna Ewbank se prontificaram a adotar o bicho.
O bicho já não era mais exclusivamente gaúcho. Rapidamente, Caramelo foi se tornando um ícone de resiliência em meio à tragédia climática global. Seu simbolismo cruzou as fronteiras nacionais e tornou-se um emblema do aquecimento global.
No programa “Domingão com Huck” do dia 12, foi dito que a imagem de Caramelo no telhado substituiria a do urso polar ilhado num iceberg, já que as mudanças climáticas não mais estavam circunscritas ao distante polo Setentrião, mas batiam nossa porta.
Desde logo o cavalo vem ganhando menções na prelo. Caramelo chegou a diversas mídias do exterior. Notícias do salvamento foram publicadas nas páginas do New York Post, BBC, ABC, Al Jazeera, The Guardian, NBC, Le Figaro, Clarín entre outras mídias espalhadas pelo mundo.
Quase todos os meios de notícia, brasileiros e internacionais, citaram o nome de batismo escolhido nas redes sociais, embora nenhum deles tenha analisado seu significado para além da taxa ambiental. O bicho causou comoção pois, por dentro do simbolismo da razão bicho e do clima, Caramelo é simbólico de nosso hibridismo racial.
Há alguns anos houve mobilização semelhante. Foi em 2020, quando o Banco Médio decidiu que a Lar da Moeda imprimiria uma novidade cédula, que uma campanha de grandes proporções tomou as redes sociais em pouco tempo. Através da ironia tão geral no país, os brasileiros defendiam que, em vez do lobo-guará, um humilde cachorro vira-lata caramelo fosse impresso na novidade nota de R$ 200.
Os internautas se viam refletidos num cachorro de rua, sem raça definida, um híbrido de tamanho mediano, sem a venustidade de um cão de raça com pedigree. Trata-se de uma autoimagem que diz muito sobre uma vez que nós brasileiros enxergamos as raças no Brasil e uma vez que ainda nos vemos uma vez que um povo miscigenado, a despeito das forças em contrário atuantes na taxa identitária hegemônica nos dias de hoje.
Na última dezena vivemos a preeminência de teorias identitárias acerca da nossa formação racial, contrária a teoria de miscigenação. Muito alimentada por movimentos negros com demandas justas, uma reinterpretação racial radicalizada do Brasil vem forjando mentes dentro e fora das universidades.
Grande segmento dos identitários de hoje enxerga o Brasil uma vez que um país birracial, branco e preto, exploradores e explorados, sem matizes ou sutilezas. Nesse cenário simplista, a miscigenação é vista uma vez que um embranquecimento da sociedade, genocídio do povo preto.
Uma vez que não se pode mais falar de democracia racial nem uma vez que utopia pátrio, sob o risco do cancelamento das redes sociais, projeta-se esta quimera para outros seres. Se não podemos mais nos reconhecer uma vez que miscigenados, deslizamos esta versão aos cães e, agora, também aos cavalos.
Assim, malandramente, continuamos a nos ver uma vez que misturados racialmente através dos animais. Os brasileiros parecem dar um drible naqueles que querem nos transformar numa sociedade birracial simplista, mera imitação dos EUA, que buscam extinguir a longa tradição brasileira de encontro de raças.
No mundo dos animais ainda podemos ser orgulhosamente mestiços, caramelos. E, através deles, ainda conseguimos nos unir nacionalmente, superando as barreiras raciais, em procura de alguma resgate para um povo híbrido assaltado pela tragédia. Que povo é capaz de viver sem utopia?
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