As janelas de um fusca emolduram retratos em branco e preto do Brasil na dezena de 1970. De São Paulo até Roraima, as aberturas do sege serviram uma vez que um segundo visor para a câmera de Claudia Andujar, célebre fotógrafa que, naquele momento, dirigia rumo ao que se tornaria sua missão de vida nas terras yanomami.
As fotos ficaram guardadas no apartamento de Andujar que, aos 92 anos, cuida do corpo debilitado. Mas a sossego forçada pelo tempo foi interrompida por uma visitante de Eder Chiodetto, curador da exposição “Claudia Andujar: Cosmovisão”, no Itaú Cultural, dedicada ao trabalho da fotógrafa anterior aos cliques de yanomami que formariam “Amazônia”, pelo qual ficou conhecida mundialmente.
Chiodetto tinha visto uma obra única de Andujar, em seu apartamento, que consistia em colocar uma placa de acrílico variegado sobre uma segmento específica de uma foto em preto e branco, uma vez que se o material desse ao clique uma espécie de áurea ao ressaltar um componente da imagem. “Perguntei se ela queria trabalhar, e ela disse, ‘sim!'”, conta o curador.
Com papel celofane de diversas cores, Andujar criou novos recortes coloridos para a série de fotografias tiradas durante a viagem fatídica, em 1974, quando decidiu partir rumo a Roraima ao lado do propagandista Carlos Zacchini. Chiodetto ampliou as fotos e transformou os recordes de celofane em acrílico, dando vida à novidade série inédita de Andujar, a primeira desde 2002, quando a artista parou de gerar.
“O Voo do Watupari”, disponível na mostra, foi batizada pela reação dos indígenas à chegada de Andujar no território. “Disseram, rindo, ‘Claudia, você veio a bordo de um urubu sem asa’, em referência ao fusca preto. Urubu, em yanomami, é watupari”, explica Chiodetto.
A fotógrafa escolheu levar o sege ao território porque sabia que o veículo poderia ser útil à comunidade em casos de emergência. Mas, para chegar lá, atravessou rios de obséquio, sobre balsas que carregavam cimento. “Não podia chover, porque se chovesse, o cimento amoleceria e cairia na chuva, levando o sege junto”, diz o curador. “Ela rasgou o Brasil em plena ditadura militar, quando havia tanques de guerra nas estradas. É essa viagem que leva Claudia ao seu fado de ativista.”
Duas séries do período estão na mostra. “Malencontro” retrata a doença e a prostituição provocadas pela invasão do mina na comunidade indígena. Ainda que as fotos tenham sido tiradas antes, foi só na dezena de 1980, para uma exposição no Masp com Darcy Ribeiro, que Andujar terminou o trabalho.
Os cliques foram ampliados e fotografados novamente, mas dessa vez com o revérbero de velas e abajures sobre e sensação. O resultado são novas fotos, dessa vez manchadas por um amarelo encardido, quase uma vez que se fosse sintoma de uma doença. Uma foto, que mostra uma gaiato com uma ventre enorme, poderia ter sido tirada em 2022, quando veio a tona a crise humanitária envolvendo a falta de vermífugos e mantimentos na terreno yanomami.
“Ela, uma vez que uma judia que fugiu do Imolação e viu boa segmento da família ser assassinada, vê a presença do varão branco chegando para destruir tudo e diz que a história se repete”, afirma Chiodetto. “Uma comunidade mais vulnerável e uma dominante, que vai matar. Ela defende os vulneráveis, uma vez que foi a família dela.”
“Sonhos Yanomami” também tem fotografias tiradas no período, mas a série só foi criada em 2002, quando, em seu apartamento, Andujar sem querer sobrepôs dois slides cromo em sua mesa iluminada, utilizada para averiguar os negativos antes de revelá-los, ainda na era do filme analógico.
Tapume de 20 anos depois das fotos originais, ela percebeu que atingira um objetivo idoso —o de simbolizar, através da retrato, o transe dos yanomami ao utilizar o pó yãkoana, um alucinógeno utilizado para dissipar as fronteiras entre terreno e firmamento, corpo e espírito. Quando o repelo acaba, o que foi visto deve ser relatado ao pajé, que irá decodificar se a lavoura será boa ou se a localidade será atacada.
A série de Andujar mostra retratos de indígenas sobrepostos a fotos de montanhas e animais justapostos a florestas para gerar paisagens surrealistas. Quando os yanomami viram o trabalho, confirmaram que a artista tinha representado o transe.
Repensar imagens anos depois de tê-las tirado é um traço fundamental do trabalho de Andujar, segundo Chiodetto. “A retrato raramente é usada da forma que sai da câmera. Sempre há outras etapas de processamento para atingir um objetivo”, diz.
Ainda que fosse uma fotojornalista, a experimentação permanente aproximou a obra de Andujar da arte. Algumas séries da exposição, inéditas ao público paulista e criadas quando a fotógrafa trabalhava para a revista Verdade —antes do contato com o povo yanomami— mostram experimentos com dupla exposição, desfocalizações e até queima de negativos, uma vez que é o caso de “Pesadelos”, série de fotografias manchadas e irregulares de coisas reais, uma vez que um gatinho e máscaras decorativas.
Ou, ainda, “Homossexuais”, da dezena de 1960, em que Andujar retratou casais desfocados e em enquadramentos inesperados para proteger a identidade dos personagens. Se uma teoria sua leva anos para ser chocada, suas criações ainda chocam o mundo depois de décadas. “Homossexuais” causou furor na Hungria e chegou a ser interditada quando foi exposta no museu etnográfico do país governado pela extrema direita.