Claudia Leitte cometeu “crentewashing” ao substituir o verso “saudando a rainha Iemanjá” por “eu quina meu rei Yeshua”, o nome de Jesus em judio, no axé “Caranguejo”?
A cantora baiana fez a permuta religiosa numa apresentação no término de semana. É relapso na manobra.
Em 2014, num show que virou DVD, ela fez a mesma mudança na cantiga composta por parceiros musicais de longa data. A internet e sua memória de elefante recuperaram o trecho em fevereiro deste ano, quando Leitte recebeu as mesmas acusações de agora: a de que foi racista ao promover uma “lavagem” evangélica para a música que saudava uma orixá meão para a religiosidade afro-brasileira.
Em 2023, Leitte contou sobre sua conversão evangélica no programa de Faustão na Band. “Eu sou cristã, sou religioso, religioso mesmo. Fui batizada nas águas em 2012, estou passando por um processo de transformação. Eu descobri que não é assim… Da noite para o dia você se tornou uma belíssima e cintilante indivíduo.” Uma vez que tantos brasileiros, ela havia sido batizada na Igreja Católica na puerícia.
A intolerância religiosa contra crenças de matriz africana é um passivo de muitas igrejas evangélicas. Em sua modelo mais radical, estimula a vandalização de terreiros e a violência contra pais e mães de santo.
Evidente que pouquíssimos crentes vão tutorar alguma coisa criminoso assim, mas o preconceito com religiões de origem afro é viral no segmento. Um livro do sacerdote Edir Macedo é sintomático dessa cena. Em “Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?”, o fundador da Igreja Universal do Reino de Deus inclui exus no rol de “espíritos malignos sem corpos, ansiando por acharem um meio para se expressarem neste mundo”. A tônica da obra é muito essa.
O deputado e pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), de insuspeitas credenciais progressistas, falou sobre essa repulsa entranhada nas igrejas evangélicas. Por um tempo ele a sentiu, até compreendê-la uma vez que efeito paralelo de uma teologia nefasta.
“Tinha 16 anos, um garoto manejável, enamorado por Jesus, da sossego. Se passasse na frente de uma igreja católica, eu só seguia. Se passasse por uma oferenda, sentia terror, dizia no meu coração: tá repreendido em nome de Jesus. Eu não fazia secção de um grupo nazista, não era um juvenil perverso, mas fui formado numa teologia que me fez encontrar que aquela experiência religiosa era contra mim. Com religiões de matriz afro, tudo ganha essa caracterização de exótico, primitivo, do mal”, disse em entrevista à Folha, no ano pretérito.
Ao suprimir a saudação a Iemanjá em seu show, Leitte alimentou essa mesma cultura do ódio contra os terreiros, segundo Zulu Araújo, rabino em Cultura e Sociedade pela Universidade Federalista da Bahia e mentor do Olodum.
Importante frisar: “Todo e qualquer cidadão brasílio tem o recta de professar a religião que muito desejar”. Se Claudinha quiser ser evangélica, bom pra ela. E se ao se metamorfosear “isso lhe provoca limitações”, uma vez que um desconforto com uma música que não mais espelhe suas convicções religiosas, “é simples”, diz Araújo. “Não cante.”
Ele aponta que o ritmo que projetou Leitte para o estrelato “é fruto de uma tradição músico de origem africana”. Axé, por sinal, é um termo iorubá para vigor. “Não há uma vez que impedir que mitos e símbolos religiosos estejam presentes nas letras.”
O secretário de Cultura e Turismo de Salvador, Pedro Tourinho, comprou combate com a conterrânea. Não citou nomes, mas o recado era evidente. Escreveu no Instagram sobre o protagonismo de cantores brancos num gênero músico de raiz negra e emendou: “Quando um artista se diz secção desse movimento, saúda o povo preto e sua cultura, reverencia sua repercussão e musicalidade, faz sucesso e ganha muito verba com isso, mas, de repente, escolhe reescrever a história e retirar o nome de orixás das músicas, não se engane: o nome disso é racismo”.
Leitte não inova ao readequar seu repertório por motivos religiosos. Tivemos Tim Maia e sua período Cultura Racional. Ou Joelma omitindo o verso “um copo sobre a mesa de Quijá, globo de cristal e cartas de baralho”, esotérico demais para seu novo paladar evangélico, na cantiga “Príncipe Seduzido”.
O católico Roberto Carlos misturou fé, superstição e TOC ao deixar de trovar por anos “Quero que Tudo Vá pro Inferno”, por culpa da vocábulo diabólica. Em 2004, um encontro com jornalistas promovido por sua gravadora chegou a tocar a música banida, mas trocando o refrão infernal pela voz de Cid Moreira recitando um salmo bíblico.
Caetano Veloso incluiu um gospel em sua turnê com Maria Bethânia, uma forma de “expor o interesse que me despertam as igrejas evangélicas do Brasil”, segundo o próprio. Claro está em não perder esse movimento tectônico na placa religiosa vernáculo, muito mais plural do que a caricatura de religioso que se pinta nos periferia seculares.
Em 2013, o sociólogo Reginaldo Prandi publicou no jornal um item sobre o progressão do pentecostalismo. Ali, condensava alguns medos que essa teoria provocava no entorno social. Alguns soavam hiperbólicos.
“O progressão vertiginoso das igrejas evangélicas anuncia para breve um Brasil de maioria religiosa evangélica. Se isso vier a sobrevir, o país se tornará também culturalmente evangélico? Traços católicos e afro-brasileiros serão apagados, assim uma vez que festas profanas malvistas pela novidade religião preponderante? Deixarão de subsistir o Carnaval, as festas juninas, o famoso São João do Nordeste? Rios, serras, cidades, ruas, escolas, hospitais, indústrias, lojas terão seus nomes católicos trocados? A cidade de São Paulo voltará a se invocar Piratininga? E mais, mudarão os valores que orientam a vida por cá?”
Mais de uma dezena se passou desde a publicação do texto. O Carnaval não deixou de subsistir, nem zero disso supra, mas vimos algumas inflexões sociais nesse meio-tempo.
Ao sentir premência de remover símbolos da fé afro-brasileira de sua música, Claudia Leitte escancara uma vez que “os valores que orientam a vida por cá” vão se reacomodando num Brasil cada vez mais evangélico.