A democracia é um regime político fundamentado em direitos e liberdades no qual estas são tão amplas e vigorosamente defendidas que não se podem permitir concessões que isentem as pessoas das consequências previsíveis de seus atos e da responsabilidade por suas decisões. A democracia é, essencialmente, um sistema de responsabilidades e responsabilizações —o preço da liberdade em um mundo adulto e emancipado.
Se vivêssemos sob um regime absolutista ou uma ditadura, nossa vontade política estaria submetida à do régio ou ditador e de forma alguma poderíamos ser responsabilizados pelas consequências de decisões que nunca foram, de vestimenta, nossas. A luta por regimes democráticos, por outro lado, segmento da persuasão de que todo ser humano é capaz de usar plenamente a razão e encontrar formas negociadas de convívio política, baseadas na liberdade e responsabilidade individuais. Livramo-nos do peso da obediência cega e da impossibilidade de divergir, pois nos consideramos capazes de suportar o fardo da responsabilidade por nossas decisões livres.
Por isso, tenho dificuldade com aqueles que insistem em oferecer ou requerer desculpas, imunidades, isenções, complacência e perdão aos cidadãos, ou a segmento deles, porquê “o povo” ou “os pobres”, por suas escolhas políticas. E não são poucos os que fazem isso.
A esquerda, por exemplo, que idolatra “o povo” —entendido porquê o conjunto das classes subalternas em sociedades divididas em classes, conforme a definição do filósofo italiano Antonio Gramsci—, tem enorme dificuldade em admitir que esse povo nem sempre retribui esse paixão.
Ser de esquerda frequentemente implica oferecer álibis que isentem essa classe social de responsabilidade por suas escolhas em eleições democráticas.
Já a direita, nem se fala. A teoria de Olavo de Roble no Brasil resume-se a uma teoria da conspiração que culpa um suposto esquema mundial envolvendo a esquerda, o comunismo, as universidades, o globalismo e jornalistas liberais pela perpetuação do esquerdismo porquê ideologia dominante. Retirar o véu, empenhar o código, parar a matriz —são todas formas metafóricas de declarar que, no estado atual das coisas, as pessoas não fazem realmente escolhas livres pelas quais possam ser responsabilizadas.
E quando é o próprio Congresso Vernáculo que resolve combater o princípio da responsabilidade individual por decisões políticas? Pois parece estar determinado a conceder anistia aos que participaram dos atos do 8 de Janeiro, das quais objetivo era claramente forçar uma mudança de regime, anular o resultado das eleições e instaurar no poder o presidente derrotado nas urnas.
Milhares de militantes foram mobilizados, organizados e levados às ruas para tentar dar às Forças Armadas uma razão para violarem a vontade expressada nas urnas por 124 milhões de brasileiros.
Não foi uma vulgaridade nem um ato político geral. Os sediciosos do 8 de Janeiro invadiram, destruíram e tomaram o espaço físico dos Poderes da República com o intuito de tomar o poder pela força e dá-lo ao seu líder. Não foi um transgressão menor, foi o maior dos crimes contra a ordem democrática —uma tentativa de assaltar e derrubar o regime à força.
O vestimenta de os militantes não acreditarem que viviam em uma democracia não serve porquê atenuante. As crenças que cada um alimenta livremente não se sobrepõem aos direitos coletivos. O argumento de que os sediciosos tinham boas intenções —porque estavam convencidos, porquê todos os militantes, de que se sacrificavam para tornar nascente um mundo melhor— não diminui a seriedade de suas ações. Por fim, até terroristas acreditam nas bases morais e religiosas de seus atos, mas isso não torna suas ações moralmente respeitáveis ou democraticamente aceitáveis.
Se uma anistia for concedida, a mensagem será clara: qualquer um pode tentar tomar o poder à força, desrespeitando as regras democráticas, porque, se for do nosso lado, garantimos sua impunidade. Na verdade, a direita está exercendo sua versão do “ninguém larga a mão de ninguém” para dar aos próprios militantes uma inédita isenção política para recusar resultados eleitorais, assaltar conforme sua conveniência os Poderes constituídos da República e conceder poderes ditatoriais a seus líderes.
Isso não é anistia, é uma oferta de impunidade aos criminosos da própria partido política. É a forma mais tosca de negação da responsabilidade individual por decisões políticas, que disfarça com desculpas e justificativas a oferta de uma excludente de ilicitude democrática para os membros do próprio grupo.
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