Sob reluzentes túnicas brancas, andarilhos vagam por um galeria escuro. Rezas se sobrepõem ao caminhar firme e simétrico. Eles buscam as palavras de um respeitado padre, filhos de uma país à extremo de revoluções. O grupo —entre eles, um pai e seus três filhos—, enfim alcançam um altar, mas nem todos temem a Deus da mesma forma.
Fiódor, o patriarca, pede o perdão divino por ter maltratado suas mulheres e seus descendentes. Dmitri, o rebento mais velho, imponente, dispara ofensas contra o próprio pai. A pureza de Aliocha, o caçula, aproxima o jovem do sacerdócio, enquanto o ceticismo de Ivan, o do meio, fica no queimada cruzado dos conflitos familiares.
Em sua primeira adaptação teatral no Brasil, que estreia no Sesc Pompeia, em São Paulo, nesta quinta (27), “Os Irmãos Karamázov” relê o último romance de Dostoiévski e sintetiza a efervescência da Rússia pré-revolucionária com um dinamismo hipnotizante.
A trajetória dos três se confunde numa trama de parricídio guiada por um dos julgamentos mais célebres da literatura. Entre crenças e códigos pessoais, o texto original elege o sobrenome maldito para espelhar a sociedade e estudar seus comportamentos diante dos limites entre a vida e a morte.
“Da imagem do czar uma vez que salvador ao cristianismo ortodoxo enquanto forma de dominação, a peça compartilha muitas semelhanças com o Brasil atual. Percebemos que não era necessário qualquer tipo de mudança ou contextualização. Bastava submergir no interno desses personagens”, diz Caio Blat, que estrela e dirige a peça com Marina Vianna.
A Rússia do termo do século 19, marcada pela queda de lideranças religiosas, pela insurgência de classes populares e pelo aumento das tensões sociais, ganha um novo sentido hoje, perante a extrema direita que se apropria de discursos morais e a polarização impulsionada pelas redes sociais.
Mas, se o texto clássico é denso, a montagem aposta nas vias de um fenômeno pop, com performances, com dança e música, conduzidas pelo elenco de 13 integrantes e integrando até a versão em libras à coreografia.
A abordagem se refletiu na procura do público —o espetáculo chega à cidade depois uma temporada de sucesso no Rio de Janeiro, em janeiro, com ingressos esgotados em três dias. As vendas online da novidade temporada também já estão praticamente encerradas.
Em cena, a grande graduação convive com a simplicidade dos cenários, que ressalta o jogo entre os atores. O envolvente é definido pelo embate jacente de diferentes pontos de vista, batalhas pela resguardo de variadas visões de mundo que impedem a identificação de um só protagonista.
A urgência temática se reflete na própria temporalidade da peça, que condensa três dias em duas horas de espetáculo. “Nós queríamos transformar esse romance seminal em uma espécie de ópera rock, completamente contemporânea. Logo criamos um espetáculo coletivo, em que todos se tornam narradores. Todos se tornam cúmplices do homicídio de Fiódor Karamázov e poderiam ter feito alguma coisa para evitar a tragédia. Essa polifonia é o que Dostoiévski deixou de mais revolucionário”, afirma Blat.
Aclamado por Freud pela forma uma vez que retrata desejos humanos e o multíplice de Édipo, o livro é, para o ator, o mais teatral do responsável russo, além de ser uma síntese de sua obra. No papel de Ivan Karamázov, Blat vê os silêncios do personagem uma vez que contrapontos à sensualidade dessa família que vomita seus pesadelos ou pecados.
É ele quem protagoniza episódios, uma vez que o do “Grande Inquisidor” —no livro, um poema relatado por Ivan, sobre o encontro de um cardeal da Questão Espanhola com Jesus, de onde foi parafraseada a máxima “se não há Deus, tudo é permitido”— e os acessos de loucura perante o tribunal para o caso de seu pai.
O papel se ampara na ampla experiência do ator com adaptações de clássicos nacionais, uma vez que quando viveu Riobaldo, de “Grande Sertão: Veredas”, nas montagens de Bia Lessa e também no filme de Guel Arraes.
A virilidade caótica da peça aprisiona dois espíritos em um único corpo —caso de Luisa Arraes, que interpreta personagens opostos, tanto Dmitri uma vez que o jovem Iliúcha, garoto de origem humilde que funciona uma vez que contraponto moral à febre do rebento mais velho. Ao se gostar pela mesma mulher que o pai, Dmitri se diz disposto a tudo para conquistá-la e se torna o principal suspeito de sua morte.
Arraes, que por vezes interpreta os dois simultaneamente em cena, vê as figuras uma vez que faces de uma mesma moeda. “Essa dificuldade foi se adequando ao leque que cada ator apresentava, independente se eram homens ou mulheres”, diz Arraes, que já encarnou essa dualidade com Diadorim, em “Grande Sertão”.
“O Dmitri pode ser qualquer um dos dois. Para ele, pensamos que a inversão poderia torná-lo mais cativante e subverter a imagem saturada de um ‘boy lixo’. Acredito que isso facilita a identificação e borra linhas que Dostoévski já desconsiderava na era.”
Por outro lado, alguns arquétipos também auxiliam a produção a investigar a núcleo humana. É o que acontece com o Fiódor de Babu Santana, “malandro russo” que sintetiza a cobiça, o egoísmo e tudo de pior que pode subsistir em um ser humano.
“Para conceber uma figura, precisamos nos desfazer de certas questões morais. Nesse caso, tive que tutelar e crer na verdade de Fiódor. Uma das melhores coisas de ser ator é poder testar vilões sem pavor de magoar ninguém”, afirma.
Ele entende o personagem uma vez que alguém desprovido de empatia e enxerga diversas relações entre o reacionário e o Brasil de hoje.
Enquanto interpreta devasso, Babu em breve também poderá ser visto na comédia “Oeste Outra Vez”, em que troca a Rússia czarista pelo sertão de Goiás e questiona ideais de masculinidade ao zombar dos cowboys. Vencedor do Festival de Gramado de 2024, o filme chega aos cinemas brasileiros no final de março.
Quem também se destaca no palco é a própria Vianna. Ao viver o padre e o humilde pai de Iliucha, ela se põe uma vez que intermediária entre a miséria e a salvação. “Não quero crer que Dostoiévski seja arte para as elites. Me interessa violar Dostoiévski, torná-lo generalidade, para que todos possam usar e desmandar dele”, diz.