“Será que eu também não presto?”, pergunta Jup do Bairro, em uma reflexão sobre a sua participação em “7 Gatinhos”, peça de Nelson Rodrigues encenada pelo Teatro Oficina a partir desta terça-feira (10). Movida pela inquietude e pelo libido de colocar o próprio corpo a serviço das emoções, a cantora aceitou o invitação para caminhar rumo ao ignoto em sua estreia teatral.
E montar Nelson, no Oficina, é para quem está disposto a se despir e pensar na hipocrisia, nas canalhices cotidianas e na capacidade que todos temos de ser abusivos uns com os outros.
“Porquê é que eu vou narrar sobre os abusos da peça se eu não cruzar com os meus?”, questiona a diretora Joana Medeiros. “A gente vê que cada um de nós é abusado uma, duas, três, quatro, cinco vezes, repetidamente. E todos nós também somos canalhas.”
Em “7 Gatinhos”, quatro das cinco filhas do par formado por Noronha e Aracy são prostitutas. Débora, Arlete, Aurora e Hilda precisam contribuir para o enxoval da caçula, Silene, 15, interna em um escola com disciplina rígida e preservada para o conúbio que deve redimir a família.
A história sofre uma reviravolta quando Silene, a jovem supostamente pura e mimada, é acusada, no escola, de matar uma gata prenha a pauladas. O pai descobre que a caçula está pejada, abandona o trabalho serviçal uma vez que contínuo na Câmara dos Deputados e transforma o próprio lar, na zona setentrião do Rio de Janeiro, em um bordel.
As vísceras da família são expostas em um cenário de traições, revelações e violência.
“As filhas projetam sua pureza na mana mais novidade que, por sua vez, desenvolve uma liberdade, um ódio profundo, violento e indiferente por uma estrutura familiar tacanha. Vivemos uma visão tremenda, 1957 se transpõe para 2025. E nós vamos com coragem rasgar nossa loucura velada com o sangue puro selvagem e inalterável do libido”, diz a diretora.
O espetáculo faz revezamento, na pista do Oficina, com outra peça do dramaturgo, “Senhora dos Afogados”, em papeleta até 28 de julho, sexta, sábado, domingo e segunda, depois temporada lotada no Sesc Pompeia. “7 Gatinhos” é apresentada nas terças e quartas-feiras, às 20h.
A jornada dupla de Nelson Rodrigues não foi planejada, mas é provável que recebesse a aprovação de Zé Celso, um grande simpatizante do dramaturgo. Ou não. Pensar do que o pai do Oficina gostaria ou rejeitaria é alguma coisa manente entre os atores do grupo, que, obviamente, não conseguem chegar a uma peroração.
“7 Gatinhos” surgiu uma vez que teoria no final da temporada de “Mutação de Divinização”, a peça que estava em papeleta quando Zé Celso morreu, em julho de 2023, e voltou a ser encenada um dia depois os rituais de despedida.
Os jovens artistas da montagem queriam continuar juntos, escolheram o texto e fizeram uma única encenação, no dia 25 de dezembro de 2024, em pleno Natal, com a moradia enxurro.
O espetáculo não seguiu em frente, o grupo planejou montar um texto de Samuel Beckett, chegou a ensaiar, rompeu com o dramaturgo irlandês, cogitou alguma coisa de Dostoiévski e, enfim, voltou a Nelson Rodrigues.
O retorno foi motivado pelo impacto causado nos artistas por “Senhora dos Afogados”, também do Oficina, mas com elenco mais experiente e estrelado, incluindo Marcelo Drummond, Leona Cavalli, Giulia Gam, Regina Braga e Cristina Mutarelli, e estrutura de superprodução sob a direção de Monique Gardenberg.
“Façam ‘7 Gatinhos’. Vai ser demais”, aconselhou Camila Motta, uma das diretoras do Oficina. O argumento é que seria interessante um momento de 2 vezes Nelson no teatro da rua Jaceguai, no Bixiga.
“A gente brinca que é um lado A e um lado B, com a venustidade que isso significa. Um com grana, outro sem grana. Um com atores muito experientes, outro com a gente. Essa é a minha versão”, afirma Joana Medeiros.
Autodenominado “Viradela da Encruza”, o grupo é formado por vários ex-integrantes da universidade antropófaga, um espaço de formação do Oficina que possibilitou o encontro entre a diretora, uma mulher de 55 anos, e os jovens atuantes.
Jup do Bairro foi incorporada recentemente ao coletivo, depois observar “Senhora dos Afogados” e ser convidada por Zizi Yndio do Brasil a participar da montagem.
“O Teatro Oficina é uma grande referência, que ultrapassa gerações. Tenho muita vontade de testar, entender o que a arte pode provocar”, diz.
Nascida no Capão Rotundo, na zona sul de São Paulo, e em plena subida artística, a cantora está envolvida na produção de seu primeiro álbum e vive “maluca” com o tamanho da demanda que é fazer música no Brasil. Porém, não resistiu ao chamado para fazer teatro.
“Quero entender as possibilidades desse encontro, entender uma vez que eu posso somar”, afirma.
Jup conheceu Zé Celso ao participar de um documentário gravado no Oficina, e perdeu a timidez de “caipira da quebrada”, uma vez que diz, ao ser acolhida pelo diretor.
“O Zé me desmontou. Foi mágico”.