Como A Ditadura Fez Violência Com Cidades De Concreto

Como a ditadura fez violência com cidades de concreto – 31/03/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

“A Amazônia já era.” “A floresta domada.” “A grande façanha de desbravamento da selva.” Esses eram os títulos de reportagens que, no início da dezena de 1970, descreviam a construção da rodovia transamazônica pelo regime militar, projetada para rasgar o Brasil de Cabedelo, na Paraíba, à Lábrea, no Amazonas.

A obra faraônica, uma vez que ficariam conhecidas as construções megalomaníacas do período por seus tamanhos e aportes financeiros monumentais, nunca foi concluída —mas se tornou símbolo da arquitetura de ferro, asfalto e concreto que se expandiu nos anos seguintes, atravessando a natureza e comunidades que estavam em seu caminho.

A construção social foi um dos pilares que sustentaram a modernização a qualquer dispêndio dos militares e, não por possibilidade, foi no período da ditadura que as paisagens brasileiras passaram por grandes alterações. Os moldes usados na estação para organizar o território não caíram em desuso e hoje estão relacionados com a explosão demográfica das periferias nos grandes centros urbanos, por exemplo.

Essa é a estudo proposta pela exposição “Paisagem e Poder”, no Meio MariAntonia, da Universidade de São Paulo. Por meio de fotografias e pesquisas recentes envolvendo a arquitetura do período militar, a mostra traça as consequências nos dias atuais.

Desbravar um interno supostamente vazio e ocupá-lo era uma teoria antiga das elites brasileiras no século 19, mas ganhou impulso pelo autoritarismo do regime militar, que criou órgãos federais para agir em diferentes estados e municípios, principalmente onde havia potencial de exploração de minérios, uma vez que bauxita, cobre e minério de ferro.

Exemplo disso foi o Programa Grande Carajás, no Pará, em seguida a invenção de riquezas minerais na Serra dos Carajás, que envolveu a construção de estradas para o escoamento da produção e a hidroelétrica de Tucuruí para trazer força à mineração.

Na maioria das regiões, já viviam indígenas ou outras comunidades, transferidas arbitrariamente ou empregadas uma vez que mão de obra barata nas grandes construções, onde as leis trabalhistas não chegavam. “Ainda mantemos essa lógica extrativista, de violência no manejo de recursos naturais”, diz Paula Dedecca, curadora da exposição e profissional em arquitetura sustentável.

A expansão estava ligada ao projecto militar de segurança pátrio, segundo Victor Próspero, arquiteto e vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil em São Paulo, o IABsp. “O vazio demográfico era considerado um território politicamente frágil e suscetível à formação, por exemplo, de focos de guerrilha ou à politização de comunidades que poderiam fazer oposição ao regime”, diz. “Tinha também uma visão econômica, mas certamente não para o desenvolvimento sítio.”

Os ganhos das construções eram drenados para polos econômicos uma vez que São Paulo, onde ficavam a maior segmento das empreiteiras e escritórios de engenharia que abocanharam o filão de mercado relacionado ao planejamento e à realização das obras de infraestrutura.

O desenvolvimento defendido pelos militares era excludente, afirma Dedecca. “As construções não emplacaram no desenvolvimento social, na distribuição de renda ou em melhores condições de ensino e saúde. Para piorar, não tínhamos prelo livre ou fiscalização”, diz.

A sujeição dos empreendimentos frearam a diversificação de atividades econômicas nas cidades interioranas. “Uma grande estrutura chegava ao sítio, com lógica e alojamentos próprios, ignorando o modo de vida e de produção que existiam ali”, diz Próspero. Exemplo é a usina hidrelétrica de Itaipu, gênese do Movimento de Atingidos por Barragens em seguida a desterritorialização de mais de três milénio pessoas.

“Governar é terebrar estradas”, dizia o presidente Washington Luís durante as eleições de 1920. O lema seria a vocábulo de ordem dos anos de chumbo. “Na ditadura, essa teoria se intensifica porque há um pacto entre governo e construção social”, diz Prospero.

Enquanto as obras impunham construções complexas sem pensar em frutos sociais, o padrão de deslocamento escolhido para unir territórios foi o mais simples e barato provável. “Fazer estrada é fácil. Você desmata e asfalta. Era um proveito fácil para as empreiteiras e um pacto com as empresas automobilísticas.”

Nas cidades, a dinastia do asfalto e concreto prevaleceu por meio do Banco Pátrio de Habitação, o BNH. Inicialmente desenvolvido para financiar habitações a pessoas de baixa renda, 80% dos empréstimos concedidos pelo banco foram destinados à construção de edifícios para as classes média e subida.

Nas periferias, o BNH produziu grandes conjuntos habitacionais uma vez que a Cohab de Itaquera, na zona leste de São Paulo, mas sem investir em infraestrutura ou ligações efetivas com o meio —visto que o veículo era o transporte priorizado, e quem morava na periferia não tinha uma vez que comprar um.

O resultado disso, diz o curador, foi a explosão de bairros periféricos isolados e favelas, uma vez que uma provável resposta das populações marginalizadas às necessidades de moradia. As classes populares se tornavam mão de obra para a construção de edifícios, ruas e avenidas. “Os prédios ficaram cada vez mais genéricos e, até hoje, um trabalhador da construção social é fácil de contratar e desonerar”, diz Próspero.

Além do Minhocão, exemplos de construções da estação foram o aeroporto do Galeão e a avenida Perimetral, no Rio de Janeiro, e o Meio Administrativo da Bahia e a avenida Paralela, em Salvador.

“São Paulo é uma desordem produzida de forma planejada. A construção social ganhou, na estação, uma força de decisão desproporcional, que suprimiu outras possibilidades de cidade, uma vez que as áreas verdes”, diz Próspero.

Assim uma vez que ficou impressa em outras capitais brasileiras, a arquitetura paulistana foi um espelho da fetichização do progresso, sinônimo de asfalto e máquinas. O próprio BNH financiou, por exemplo, a encanamento de rios na cidade, a partir de 1969.

“Nesse momento de autoritarismo, a paisagem que foi produzida é, de modo cru e bruto, o resultado de um sistema econômico pouco humanizado”, diz o arquiteto. Se as paisagens são representações espaciais de uma vez que nos organizamos socialmente, a ditadura promoveu a violência através do espaço hostil e duro. “Agora mais do que nunca, frente à crise ambiental, emergência climática, seria o momento da gente repensar um pouco essa lógica de relação com o território”, diz Dedecca.

Folha

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