Como A Netflix Reinventa A Novela Em 'pedaço De Mim'

Como a Netflix reinventa a novela em ‘Pedaço de Mim’ – 20/06/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Conflitos que ameaçam destruir famílias. Diálogos com subida voltagem melodramática. Reviravoltas que deixam personagens aturdidos e espectadores boquiabertos. A linguagem é de romance, mas o ritmo e a estética sinalizam que estamos diante de uma obra dissemelhante.

“Pedaço de Mim” chega no dia 5 de julho ao catálogo da Netflix unindo o melodrama dos folhetins à concisão das séries. Antes vistos uma vez que rivais na preferência do público, esses dois gêneros agora estão irmanados na novidade aposta do gigante do streaming.

Não à toa, a plataforma escalou um elenco repleto de ex-estrelas da TV Orbe, emissora que se firmou ao longo dos anos uma vez que a principal produtora de novelas do Brasil.

Na tela, vemos Juliana Paes dar vida à Liana, uma terapeuta ocupacional que sonha em ser mãe. Casada com o legista Tomás, personagem de Vladimir Brichta, ela descobre uma traição e decide exorcizar a tristeza na pista de dança. Nessa noite, porém, sua vida começa a descarrilhar.

Posteriormente ser vítima de um insulto sexual, a personagem não somente descobre que está prenhe de gêmeos, mas que sua gravidez é um invento científico. Uma das crianças é de seu marido, a outra é do varão que a violentou.

Essa é uma requisito raríssima conhecida uma vez que superfecundação heteroparental, gravidez na qual dois óvulos da mesma mãe são fecundados por pais diferentes. Até hoje, foram registrados murado de 20 casos em todo o mundo.

“Eu estou prenhe do bebê que eu mais desejei na vida e estou prenhe de uma coisa que eu rejeito, que eu não quero ter”, diz Liana para Sílvia, personagem de Paloma Duarte.

É uma trama que ecoa os dramas familiares tão comuns às novelas brasileiras. A exemplo de clássicos televisivos uma vez que “Por Paixão”, de Manoel Carlos, ou de “Senhora do Direcção”, de Aguinaldo Silva, a novidade atração da Netflix traz a maternidade uma vez que tecido de fundo.

No entanto, dissemelhante dessas tramas, “Pedaço de Mim” é uma obra enxuta de 17 episódios. O número é muito menor do que o das novelas tradicionais, que ficam meses no ar, mas superior aos das séries que a Netflix costuma produzir.

“É uma série de melodrama que se vale muito de elementos do folhetim explorados em novelas. De alguma forma, a gente surfou em uma praia que a gente já conhecia”, diz Vladimir Brichta. “Foi um processo híbrido muito interessante de ser feito.”

“Pedaço de Mim” é anunciada em um momento em que outras plataformas de streaming se voltam à produção de novelas.

Estrelada por Camila Pintaga, “Venustidade Infalível” será o primeiro folhetim brasílico da Max. A empresa também está produzindo “Dona Beja”, que terá Grazi Massafera no papel principal. Já em 2022, a Globoplay levou ao ar “Todas as Flores”, primeira trama produzida exclusivamente para a plataforma.

Se por um lado as novelas entram no streaming, por outro passam por uma crise na televisão. Atualmente, a teledramaturgia não consegue ter a mesma repercussão nem atingir a mesma audiência do pretérito. Diante desse cenário, pairam incertezas sobre o horizonte dos folhetins.

“A telenovela era hegemônica porque não tinha outras opções. Logo dava 50 pontos de ibope. Não vai dar mais”, diz Vladimir. “Mas sempre vai ter um público para ver a romance na TV ensejo.”

Opinião parecida tem Juliana Paes, para quem esse gênero é um traço cultural definidor do país. “É um resultado ‘made in Brasil’ que sempre vai viver, mas agora o público vai permanecer dividido”, diz ela, referindo-se às outras opções de entretenimento disponíveis.

Não é só o poder de escolha do público que aumentou. À medida que as séries se popularizaram por cá, a exigência dos espectadores também cresceu.

Hoje, narrativas com personagens caricatos e interpretações exageradas tendem a ser motivo de piada e sátira. Por isso, Juliana escolheu um registro mais realista ao encarnar a protagonista de “Pedaço de Mim”.

“Não é preciso salientar o melodrama, entregar tudo e chorar demais. A gente não subestimou o público.” Isso não quer manifestar que a produção economize na trouxa dramática. Pelo contrário.

O enredo confronta a protagonista com dilemas de difícil solução e aborda temas que estão na ordem do dia, uma vez que monstro e violência sexual.

As discussões em torno desses assuntos ficaram ainda mais candentes depois a Câmara dos Deputados validar a urgência do PL Antiaborto por Estupro.

A medida equipara a pena de monstro à de homicídio para procedimentos realizados em caso de estupro quando a idade gestacional é superior a 22 semanas. Se confirmado, o texto pode levar meninas inferior dos 18 anos a ficarem internadas em estabelecimentos educacionais por até três anos.

“Quando eu vi as notícias, falei: ‘Meu Deus! São todos os assuntos que a série acaba abordando”, diz Juliana, que se posicionou contra o PL nas redes sociais.

“A gente está em 2024. Não podemos mais tratar o recta de escolha das pessoas uma vez que alguma coisa passível de discussão por terceiros.”

A atriz afirma ainda que monstro é uma questão de saúde pública que precisa ser debatida de forma responsável. “Não dá para resolver por homens e de um jeito leviano.”

Para ela, outro matéria que merece debate é a imposição da maternidade às mulheres. A protagonista de “Pedaço de Mim” é movida por um libido irrefreável de ser mãe. Ela acaba passando por cima dos outros e de si mesma para concretizar esse ideal.

“Acho que pela primeira vez eu me questionei de onde vinha o meu libido de ser mãe”, diz a atriz, acrescentando que o caminho esperado de uma mulher é matrimoniar e ter fruto por influência do machismo.

“Evidente que eu senhoril a vida com os meus filhos, mas eu nunca tinha parado para pensar se era um libido genuíno ou se era alguma coisa que a gente vai na toada achando que tem que ser assim mesmo.”

Falar sobre a posição da mulher na sociedade é justamente um dos objetivos da série. “A gente está querendo debater de maneira mais aprofundada o machismo. Vire e mexe, percebemos retrocessos nessa questão”, diz Angela Chaves, autora de “Pedaço de Mim”.

Ela trabalhou por mais de duas décadas na TV Orbe, empresa na qual escreveu “Éramos Seis”. Para ela, a mudança de plataforma exigiu concisão, mas também deu mais liberdade.

Por esse motivo, conseguiu falar de assuntos que teriam sido difíceis de abordar na televisão. “Foi o caminho para aprofundar alguns temas sem permanecer no maniqueísmo.”

Diretor da série, Maurício Farias acrescenta que o projeto ofereceu a possibilidade de unir saberes em um novo formato.

“Foi um ponto de encontro entre as séries que se fazem no mundo e as novelas produzidas no Brasil”, diz ele, que também é egresso da TV Orbe. “‘Pedaço de Mim’ inaugura e abre caminho para essa convergência de conhecimentos e experiências.”

Folha

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