Como A Obra De Angeli Traduz O Brasil Com Humor

Como a obra de Angeli traduz o Brasil com humor e rebeldia – 12/08/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Sem papas na língua e com um traço cauteloso às imperfeições humanas e urbanas, Angeli marcou o imaginário dos brasileiros ao publicar, diariamente, neste jornal, desenhos do cotidiano caótico na metrópole, sem poupar alfinetadas em políticos poderosos ou tipos e cidadãos comuns.

Diante de tamanha irreverência punk do instituidor de Bob Cuspe, talvez muitos não imaginariam que o cartunista guardou metodicamente todo o seu trabalho por 50 anos.

O montão do artista, constituído por 2.100 itens —700 charges, 700 tirinhas e 700 ilustrações originais, acompanhados por seus esboços— foi transferido para o Instituto Moreira Salles, o IMS, em um processo de seleção que começou em 2018, ainda com a participação de Angeli. O cartunista se aposentou em 2022, quando recebeu o diagnóstico de afasia, exigência neurodegenerativa que prejudica a notícia.

Pesquisadores e o público terão entrada a todo esse material, o que permitirá que as novas gerações conheçam o trabalho do artista que definiu uma era dos quadrinhos no Brasil.

“Com a compra de secção do montão de Angeli pelo instituto, garante-se que seu trabalho será perenizado, para além da volatilidade da internet, dos jornais e revistas”, diz Sérgio Dávila, diretor de Redação da Folha, onde Angeli se tornou cartunista fixo em 1975, com unicamente 19 anos. O tempo de moradia e a publicação intensa exigida pelas notícias diárias explicam, em secção, o volume da produção que ganha um novo lar no IMS.

Outrossim, ele próprio não conseguia se separar da mesa de traçado. “A cultura do quadrinho brasiliano é um pouco dissemelhante da do quadrinho americano. Cá, quem faz charge política faz também tira, e um pouco de tudo”, diz Carolina Guaycuru, artista gráfica e mulher de Angeli há 30 anos. Juntos, eles organizaram o material por décadas, e foi ela quem deu perenidade à transferência do montão depois que o marido se afastou do trabalho.

“Quando a gente se conheceu e começou a trabalhar junto, ele jogava fora alguns desenhos de que não gostava. Eu ia lá, pegava do lixo, desamassava e falava ‘você não gosta, mas faz secção da sua história, de porquê você se transformou em um artista maravilhoso’”, lembra Guaycuru. Segundo ela, a adrenalina diária da publicação do jornal já fazia secção de Angeli.

“O corpo e a mente dele se acostumaram. Ele não entregava só um traçado, às vezes eram três, quatro”, diz Carolina Guaycuru, mulher de Angeli. Ela chegou a levar algumas tirinhas até a redação do jornal —trabalho substituído, mais tarde, pelo fax e, depois, pelo computador. “Foram anos árduos, mas ele tinha muito prazer em ser um desenhista de prensa”, diz.

É um sentimento que o próprio Angeli confessou, em entrevista ao jornal, em 2015. “Tem horas que eu tremo, porque não consegui fazer aquilo que me propus. Mas acho até que eu palato um pouquinho de suportar.”

Direcção ou não, o IMS guarda também a obra de Hilde Weber, chargista que indicou Angeli ao marido, Cláudio Abramo, diretor de Redação do jornal na dez de 1970, e o montão de Millôr Fernandes, cartunista de O Pasquim e grande inspiração de Angeli. “Ter todos esses acervos reunidos e compará-los nos permite enxergar a história da imagem impressa no Brasil”, diz Julia Kovensky, coordenadora de iconografia do IMS.

É vasqueiro encontrar coleções de artistas da prensa guardadas com tanto esmero, diz Kovensky. Ela dá o exemplo de J. Carlos, artista gráfico da primeira metade do século 20. Os poucos desenhos recuperados estavam em condições precárias, ainda com os furos das tachinhas usadas para fixar as peças no quadro de cortiça da gráfica. “Antigamente não tinha esse desvelo com o original que temos hoje.”

Angeli também deixou marcas nas margens de suas tiras. Eram recadinhos espirituosos para colegas de redação ou dúvidas de gramática —que precisavam ser checadas no léxico, e não no Google. Em algumas charges, o balão de diálogo está sem texto, dando pistas sobre o raciocínio do cartunista —numa delas, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso rola pela rampa do Palácio do Planalto, porquê se desse cambalhotas. Sobre o traçado, lemos, “lá vai o Brasil descendo a ladeira”.

Se, para alguns, Angeli é o chargista que acompanhou a política internacional e vernáculo, para outros ele é o instituidor de Rê Bordosa, Bob Cuspe, Wood & Stock e os Skrotinhos, personagens que expressavam os comportamentos e aflições de uma novidade geração que vivia as mutações de um país redemocratizado.

“Quem lê e curte o Angeli se move pelos cenários de personagens dele. Ele fez uma ponte entre o cartum e a história em quadrinhos com a charge política e editorial”, diz Laerte, amiga, cartunista da Folha e quadrinista que, em 1985, lançaria com Angeli e Glauco a revista Chiclete com Banana.

“Ele representa a profaníssima trindade do quadrinho vernáculo, junto de Glauco, morto precoce e tragicamente, e Laerte, a nossa Michelangelo. Zero foi o mesmo depois do trio e sua influência segue viva e permanente nas gerações seguintes”, diz Sérgio Dávila. “Dos três, Angeli é a vertente mais punk. Se fosse uma filarmónica, ele seria do Clash e, se fosse político, faria secção do anarquismo.”

O humor rebelde e a melancolia ácida são reflexos da vida, diz Guaycuru, e para o artista foram porquê a tinta usada para pintar os comportamentos que ele analisava, na tentativa de extrair a núcleo humana. “Angeli percebia as vísceras do ser humano, e elas não são bonitinhas. Nosso país não é simples. Ele buscava a sátira para buscar a mudança, a melhora.”

Ou, nas palavras do próprio, “tenho direto de criticar qualquer lado”. “Eu sou em prol do ser humano, eu trabalho pensando nisso. Mas, ao mesmo tempo, tem sujeitos que me irritam muito mais.”

Folha

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