“Carlos, Erasmo”. O título do álbum de 1971 parece tirado de uma referência bibliográfica acadêmica. Magnificada por Walter Salles em “Ainda Estou Cá”, a melodia “É Preciso Dar um Jeito, Meu Camarada”, parceria com Roberto Carlos —que no mesmo ano lançaria o melhor LP de sua curso— é a terceira filete desse disco.
Com a cozinha de Os Mutantes, a guitarra-metralhadora de Lanny Gordin sustenta os versos cantados, muito quando a ingresso das cordas orquestrais interage com o power trio: “Mas estou envergonhado/ Com as coisas que eu vi/ Mas não vou permanecer silente/ No conforto quieto/ Uma vez que tantos por aí”.
Utilizada em dois momentos-chave do filme, incluindo os créditos finais, a melodia estabelece um diálogo possante da obra cinematográfica com a tradição músico, e isso em um país onde a música popular tem sido muito mais do que a {sigla} MPB poderia abraçar —talvez um pouco similar ao que a literatura é para um russo, ou o que, para um americano, seja o cinema.
Seguir a trilha da MPB pode ser, de trajo, uma leitura paralela, grandiloquente e envolvente de “Ainda Estou Cá”. As palavras não ditas, os gestos contidos, que marcam as deslumbrantes atuações das duas Fernandas —mas também as da filharada, com destaque para a Nalu de Bárbara Luz— são interceptadas e comentadas por sentidos da narrativa sonora difíceis de tomar por ouvidos estrangeiros.
Ao contrário de “É Preciso Dar um Jeito, Meu Camarada”, a maior segmento das canções presentes no filme têm função diegética, isto é, são escutadas pelas personagens, integrando o contexto ficcional.
Dentre elas, há espaço para um Brasil louco, pós-tropicalista, totalmente destoante da rigidez autoritária. Uma vez que “Jimmy Renda-se”, de Tom Zé, que surge em elevado e bom som na cena da blitz policial. Ao menos cá, o público internacional não está em pior situação do que o brasiliano, já que de zero adiantariam, nem mesmo para nós, legendas com os versos “tac sutaque destaque tac she”, ou “tique tique butique que tique te gamou”.
A mesma farra idiomática está na cena da família (ainda unida) dançando ao som de “Back to Piauí”, de Juca Chaves, que o pai coloca na vitrola no lugar do som roqueiro dos britânicos do Ten Years After. Pouco antes, desatentas à letra em gálico (que conduz à simulação explícita de um orgasmo), as irmãs dançam ao som de “Je T’Aime…Moi non Plus”, de Serge Gainsbourg, que no contexto geracional pode mesmo tanger divertida.
Caetano Veloso é, de certa forma, o maestro dessa trajetória da MPB no filme. Intrusivo e inclusivo, ele deixa rastros por toda segmento, conectando o som do —portanto miudíssimo— envolvente universitário ao dos corações dos jovens da periferia industrial, fãs de Roberto, Erasmo e Tim Maia.
Tim aparece em dois momentos, e Roberto toca tanto no rádio de rima de Zezé, na lavanderia da vivenda, porquê no carruagem da família voltando do aeroporto. Nesse último caso, a melodia na voz do Roberto é do próprio Caetano: “Tudo em volta está deserto/ Tudo perceptível/ Tudo perceptível porquê dois e dois são cinco”. E é de Caetano, também —na tradução de Os Mutantes— a versão de “Baby” que anima a leitura da epístola londrina de Vera.
A voz do baiano, mesmo cantando, entretanto, só surgirá no ato final do filme, em “Fora da Ordem”, que está lá para expressar exatamente o que diz, e em “Um Índio”, melodia cujos versos não cantados parecem complementar o sentido da cena. Já a saudade do pai que nunca mais voltou para vivenda vem do mundo lusófono, do crioulo cabo-verdiano de Cesária Évora em “Petit Pays”.
A trilha original, assinada pelo australiano Warren Ellis, trabalha com habilidade com notas pedal sustentadas, num estilo mais próximo do estoniano Arvo Pärt do que do minimalismo americano. Numa primeira visão, alguns momentos pareceram passar do ponto da emotividade, sobretudo quando o piano é adicionado à textura —porquê na cena da sorveteria, em que o torvelinho emocional expresso com totalidade sutileza por Fernanda-Eunice defronta-se com uma mediação músico um tanto invasiva.
Mas, numa segunda ida ao cinema, a arte de Ellis passa a ser mais admirada, sobretudo quando fica clara a conexão de suas pontuações com a única filete instrumental utilizada no filme, “The Fight”, elaboração para cordas do islandês Jóhann Jóhannsson, que divide com Erasmo os créditos finais. No universal, o trabalho de Ellis acentua com delicadeza as cenas, sugerindo efeitos de cordas, harpa, contrabaixo, percussão, órgão, sinos, e até mesmo um bandolim, conforme o contexto.
Voltando à MPB, duas músicas que poderiam passar despercebidas são capazes de atingir a medula de “Ainda Estou Cá”. Cantada por Gal Costa, “Acauã”, de Zé Dantas —do repertório de Luiz Gonzaga— trata do prenúncio da tragédia: “Acauã vive cantando/ No silêncio das tardes agourando/ Chamando a seca pro sertão/ Teu quina é penoso e faz pavor/ Te cala, acauã/ Que é pra chuva voltar cedo”.
A outra, o samba “Agoniza, mas não Morre”, de Nelson Sargento, é entoada “a cappella” por um vizinho de cubículo de Eunice, em cena de extraordinária dramaticidade: “Samba/ Agoniza, mas não morre/ Alguém sempre te socorre/ Antes do suspiro último”. O quina de resistência é interrompido pela voz do guarda-torturador com o tosco comando “cala a boca, porra.”
Tosco, duro, pobre de melodia e letra é também o quina cívico entoado pelas crianças pequenas —e essa era, de trajo, a verdade músico das escolas brasileiras em tempos em que ouvir rádio era um gesto libertador.
No recorte sonoro de Salles, um importante disco lançado em 1971 é cuidadosamente excluído do filme: “Construção”, de Chico Buarque, a elipse que, por faltar, está presente —talvez entremeando os silêncios das frases virtuosisticamente hesitantes de Fernanda Torres.
Tudo isso já está oferecido e, é evidente, independe do Oscar que, porquê o índio de Caetano Veloso, se vier, virá —”impávido, apaixonadamente, tranquilo e infalível”.