“Não sei o que estou procurando. Às vezes têm uns caras por quem fico enamorado, e acho que eles são o lugar que tô procurando, mas eles são só uma paisagem linda no meu caminho”, diz Leonilson em uma das gravações que compõem seu quotidiano em áudio.
A confissão é um prelúdio para a obra de um dos principais artistas brasileiros contemporâneos, que mesclou imagem, pintura, bordado e verso para falar das próprias angústias e paixões por outros homens, no período em que o preconceito era impulsionado pelo temor da Aids.
A partir desta sexta-feira, sua obra é retomada em uma grande mostra retrospectiva no Masp, que dedica levante ano a exposições que refletem sobre a história LGBTQIA+ na arte, em sintonia com um movimento internacional que põe em evidência a produção de artistas queer.
Com o imagem de traço fino, às vezes escoltado de palavras, Leonilson descrevia seus desejos e frustrações por símbolos, quase uma vez que um surrealista. Em algumas obras, a pintura se somava ao imagem, uma vez que numa tela em que um coração realista está ao meio, num fundo vermelho. Dele saem duas veias, nas quais lê-se “inconformado” e “solitário”. Sobre a figura paira, uma vez que um agouro, a frase “Leo não consegue mudar o mundo”.
O órgão se repete em outros trabalhos, uma vez que em “Pescador de Pérola”. Cá, o traço se transforma em traço, e o coração foi costurado sobre um tecido verdejante e transparente. Seus trabalhos têxteis, nos quais as figuras são costuradas uma vez que detalhes, foram os mais proeminentes nos últimos anos de sua vida —que, no Masp, correspondem aos últimos núcleos da exposição em ordem cronológica.
Em uma série de pequenos desenhos, Leonilson celebra cada um de seus amores. Em um deles, duas espadas se cruzam sobre o piano, com o título “O Músico, o Sinistro”. Em outro, um polvo segura uma esfera colorida em cada tentáculo: “O Melhor Camarada, o Várias Possibilidades”.
“Ele curtia um paixão impossível. Tem algumas pessoas que são platônicas. Às vezes ele se apaixonava até pelo ator do filme que a gente estava vendo, uma vez que o Daniel Day-Lewis”, diz Leda Catunda, artista e amiga de Leonilson, que o compara ao protagonista de “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe. Werther morre enamorado por uma mulher, mas sem expressar zero a ela. Leonilson gostava do livro. “Ele se projetava um pouco nesse sujeito hiperromântico”.
Apesar das várias paixões, o artista lamentava a solidão. Seus amantes não negavam sexo, mas careciam de afeto. “Talvez seja mais difícil para pessoas dessa geração atual entenderem que, nos anos 1980, ‘transpor do armário’ não era muito tranquilo. Por vir de uma família extremamente católica, talvez ele não estivesse prestes”, diz Catunda.
Por escolha da família, que não quis tornar públicas as narrações dos seus encontros sexuais, até hoje o quotidiano em fita nunca foi publicado. Mais de 30 anos em seguida a morte de Leonilson, Catunda acredita que a publicação esteja próxima, conforme o libido do artista.
Leonilson reutilizava signos com significados próprios para se expedir em sua obra —a exemplo do queimada, associado a uma explosão de sentimentos, da imagem de são Sebastião, simbólico para a comunidade gay, e da cruz, ligada à dualidade e à culpa.
“Ele gostava muito de dar um telefonema estranho: ‘Hoje eu fiz uma amarelinha que tem um vocalzinho, e daí vai descendo, e aí eu escrevi não sei o quê”, afirma Catunda, também uma principais figuras da Geração 80, que retomou a subjetividade na arte depois de uma dezena centrada nos geometrismos e abstrações.
Apesar de Leonilson ter participado do movimento, suas obras intimistas se distanciaram das “telas coloridas de gestos expressionistas que identificaram a produção de jovens artistas naquele momento”, diz Adriano Pedrosa, curador da mostra.
As obras são por vezes também políticas. O artista ilustrou por anos a pilar da jornalista Barbara Gancia na Folha, o que contribuiu para aproximá-lo das notícias diárias.
“Ser gay hoje em dia é a mesma coisa que ser judeu na Segunda Guerra”, disse o artista em uma de suas gravações, referindo-se a epidemia de Aids e ao preconceito ligado a ela. “Você pode ser o próximo, a praga está aí, pronta para te pegar.”
Em uma obra, copos desenhados são rotulados com nomes de grupos marginalizados, uma vez que “os negros”, “os judeus”, “os homossexuais”, “as mulheres”, “os aleijados”, “os aidéticos”.
Leonilson descobriu ser soropositivo em 1991, dois anos antes de morrer. Desabafou sobre seu adoecimento, o pânico da morte e o receio de recontar sobre a doença para a família. Em seus últimos dias, chegou gravou as alucinações decorrentes da febre. “Agora, os trabalhos são tudo que eu tenho mesmo. É a minha autobiografia, o meu quotidiano. Uma tela não é muito dissemelhante do que uma manhã minha.”
A fragilização do seu corpo se nota no traço trêmulo dos últimos trabalhos, também menos coloridos e vibrantes, e em obras que comentavam sua situação —uma vez que na série em que um braço toma soro sob a vocábulo “margarida”, ou uma pinga de sangue é intitulada de “o perigoso”, em referência a um corpo vulnerável e minaz para a sociedade.
Sua última obra, uma instalação feita para a Capela do Morumbi, foi remontada no Masp. Lázaro, que Jesus ressuscitou quatro dias em seguida sua morte, é representado por uma camisa duplicada, uma vez que um autorretrato duplo. Ao lado dele, uma longa saia evoca uma figura materna. Ao fundo, duas camisas sobre duas cadeiras, “Da falsa moral” e “Do bom coração“, representam muito e mal na cena derradeira.
“A instalação compõe o cenário para sua própria missa, um comovente rito de passagem final, expressando a transição da vida para a morte”, diz Pedrosa, que foi próximo a Leonilson. “Sua força poética vai muito além da doença, embora seja um testemunho inesperado daquele momento.”
O curador foi também responsável pela organização da Bienal de Veneza desse ano. A obra de Leonilson passou pela Cidade das Águas em 2007 —além de estar presente em coleções do MoMA, Lacma, Pompidou e Tate.
Ainda assim, o artista poderia ser considerado um anti-herói, por não se encaixar em nenhum movimento artístico contemporâneo. “Sua obra é um e pessoal, possuindo uma estética, genealogia e poética muito próprias”, diz Pedrosa. Ele alerta, porém, para o transe de compreender os trabalhos uma vez que testemunhos fidedignos de sua vida.
“Em suas entrevistas, ele admite contradições ou muda de opinião, e, mesmo em seus áudios, reconhecemos por vezes um Leonilson fabulado. É muitas vezes impossível saber se o sujeito representado na obra é o artista, outro personagem, ou uma versão fabulada de qualquer desses.”
Certa vez, Leonilson se queixou de uma pessoa que, ao ver sua obra, a acusou de ser muito pessoal. “Parece que é uma regra, eu precisar fazer coisas impessoais”, argumentou ao gravador. “Meus trabalhos são assim mesmo, eu não faço coisas impessoais, eu faço coisas para quem eu senhoril.”