Como 'o eternauta' atualiza hq símbolo contra a ditadura

Como ‘O Eternauta’ atualiza HQ símbolo contra a ditadura – 30/04/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Poucas coisas podem atrapalhar uma noite de truco entre velhos amigos no subúrbio de Buenos Aires. Entre elas, um engarrafamento, que toma as ruas da capital argentina, posteriormente um apagão levar dezenas de portenhos às ruas, em protesto. Vemos o clima de insatisfação pela janela de um coche, e os manifestantes se unem a outros tantos desvalidos e pedintes pelas principais vias da cidade.

Os primeiros minutos de “O Eternauta”, a série da Netflix que estreia nesta quarta-feira (30), são muito diferentes das páginas que abrem o gibi homônimo, um dos mais célebres do país, publicado entre 1957 e 1959.

Sob a direção de Bruno Stagnaro, as cenas da adaptação remetem mais à paisagem de mal-estar social que marcaram a curso do cineasta prateado, em 1998, com “Pizza, Cerveja, Cigarro”. “Muito mudou na Argentina nesses 20 anos, e ao mesmo tempo não mudou zero. Nessa cena, de maneira sutil, começamos a ver um personagem recluso num tempo cíclico”, diz o diretor, antecipando os ares de ficção científica.

Pouco depois, enquanto os companheiros trocam blefes, um novo blecaute lança a cidade em trevas. Todos os eletrônicos pifam. Até que uma nevasca começa a tombar sobre Buenos Aires —e quem toca nesses flocos fluorescentes morre.

Daí começa uma jornada apocalipse adentro, entre sobreviventes solidários e outros dispostos a proteger seus parcos recursos a projéctil. É difícil não pensar nos recentes tempos de pandemia ao ver personagens sob roupas pesadas e máscaras de gás para viver sob a atmosfera envenenada, desviando de cadávares pelas ruas.

Porquê fez na brasileira “Senna” e na colombiana “Centena Anos de Solidão”, a Netflix pinçou medalhões argentinos para dar sustância a sua novidade aposta latina —o mais evidente deles, Ricardo Darín.

A estrela de “O Sigilo dos Seus Olhos” é o protagonista Juan Salvo, que está recluso na morada do colega Favalli, papel de César Troncoso, e se desespera ao perder contato com a família.

“Precisávamos de um ator que traduzisse não só a identidade argentina, mas que pudesse ir de um varão generalidade para alguém que lutaria, horas depois, contra bichos intergalácticos, uma vez que nas produções ianques”, diz Stagnaro. “Isso era um problema, já que nossa cultura não tem proximidade com as armas de queima.”

Na série, Salvo ganha traços mais realistas que os da sua versão na HQ, um varão íntegro e fanático à família. Veterano da Guerra das Malvinas, agora ele sofre de ataques de fúria e alucinações que comprometem o relacionamento instável com a ex-mulher, enquanto tenta reencontrar sua filha.

“Foi uma decisão inteligente dos roteiristas, fiéis ao material original, mas com o atrevimento de recriar o pretérito de seus personagens para que fosse entendidos hoje, de inopino”, diz o ator, que ao longo da curso soube transitar entre gêneros, desde os tempos de “galancito” televisivo à sagração em “Nove Rainhas” e obras políticas uma vez que “Kamchatka” e “Argentina, 1985”.

A série atualiza uma obra símbolo de resistência e de resguardo à democracia no país. A HQ escrita por Héctor Oesterheld e ilustrada por Solano López retrata uma sociedade tomada por forças estrangeiras —com indiretas à chamada Revolução Libertadora, o golpe militar que derrubou Juan Domingo Perón em 1955.

“Em suas histórias de ficção científica, Oesterheld fazia metáforas da situação sociopolítica da Argentina, em que o país era escravizado por outros, à quadra chamados de imperialistas”, diz Paulo Ramos, professor da Universidade Federalista de São Paulo e responsável do livro “Bienvenido: Um Passeio pelos Quadrinhos Argentinos”. “Ele inovou na quadra ao mostrar a veras argentina de logo, o que não era tão generalidade.”

Mais que pincelar pontos turísticos pelas páginas, cenários uma vez que a rossio de Maio, bombardeada pelos golpistas, são peças-chave da invasão no gibi, muito uma vez que a rossio do Congresso e o estádio do River Plate.

O roteirista se inspirou no drama do náufrago Robinson Crusoé, mas expandindo a moral de sua jornada para o contextura coletivo. “O único herói válido é o herói em grupo”, afirma Oesterheld em um posfácio do trabalho.

“Estamos acostumados a descobrir que atitude heroica depende de um quidam. Ao longo do tempo, desfrutamos de histórias inventadas pelos americanos, com super-heróis. Oesterheld, nesse sentido, procura transfixar o campo de visão e nos sugerir que vejamos de forma conjunta”, diz Darín.

“‘O Eternauta’ é universal e atemporal, porque ninguém se salva sozinho. Isso vale para todas as circunstâncias da vida”, diz Troncoso, que vive um braço recta do protagonista, um varão que não se rendeu à era do dedo e, por isso, sabe ressuscitar rádios e baterias de coche para sobreviver ao caos. “Hoje, as plataformas conectam nossos modos de narrar, mas sem transfixar mão de nossa individualidade.”

O quadrinho chegou ao Brasil somente em 2012, pela editora Martins Fontes, e foi republicado numa edição luxuosa no final do ano pretérito pela Pipoca e Nanquim. A narrativa foi refeita de forma mais enxuta em 1969, com o chiaroscuro de Alberto Breccia e um tom político mordaz, trazida ao Brasil pela Comix Zone.

Nos próximos meses, a Pipoca e Nanquim relança a prolongamento da saga, que repetiu a parceria com Solano López, em 1976. “O que antes era sugerido, cá fica mais explícito. Para Oesterheld, o protagonista é o próprio povo prateado, convocado à luta”, diz Ramos. Nessa período, o roteirista investiu em obras engajadas, uma vez que uma biografia de Che Guevara, antes de ele mesmo se tornar um vítima.

Oesterheld não concluiu “O Eternauta 2” em vida —em 1977, foi raptado e morto pelo regime militar, muito uma vez que suas quatro filhas e dois genros, envolvidos na luta contra a ditadura mais sangrenta do país. Da família, sobreviveram Elsa, sua mulher, morta em 2015, e os netos Fernando e Martín, que foi consultor da adaptação.

“Deixamos de fora a conexão entre o ‘Eternauta’ e a ditadura”, diz o diretor. “Nossa história é política, mas demos um enfoque humanista. Ela tem anfibologia suficiente para ser ressignificada.”

O olhar realista de Stagnaro, porém, não esconde um país em frangalhos. Além de trazer personagens imigrantes e até uma entregadora de aplicativo, há diversas cenas em prédios caindo aos pedaços ou vendinhas bloqueadas por grades, traduzindo a instabilidade econômica de boa parcela dos argentinos.

Com o lançamento, Stagnaro quebra um ciclo de tentativas fracassadas de conciliar a trama que se estendia desde os anos 1960, envolvendo nomes uma vez que Lucrecia Martel.

O excitação se reflete nos numerosos técnicos de efeitos visuais, sobretudo na ambientação e na geração dos alienígenas —que até demoram a manar dada a dramaturgia cuidadosa, que não avança além do primeiro terço da saga.

A neve, que lembra uma cinza vulcânica, nasceu de um trabalho minusioso de mistura de sal, celulose e outros materiais sintéticos a depender da locação, diz o produtor de efeitos especiais Nicanor Enriquez. “Buenos Aires é uma cidade viva e houve dias em que tínhamos de ‘maquiar’ trechos de 180 metros, e resolver tudo em menos de um dia.”

O realismo salta aos olhos nessa mistura entre as filmagens e a computação gráfica, que recriou a capital a partir de um mapeamento feito durante a pandemia —um trabalho que pesou para Pablo Accame e Ignacio Pol, supervisores da produção virtual, e para Ezequiel Rossi, na pós-produção.

“É um ‘frankenstein’ de efeitos, mas a teoria é que ninguém saiba que técnica foi usada em cada projecto”, diz Pol. “E o uso das painéis LED foi muito útil para que os atores pudessem ver o que acontecia, sem precisar imaginar as situações”, afirma, citando a tecnologia que têm substituído as telas verdes na indústria.

“Os cenários digitais 3D são sincronizados com a câmera, logo vemos o resultado em tempo real”, diz Accame. “Há todo um planejamento no set, mas, graças à tecnologia, conseguimos continuar criando posteriormente as filmagens”, diz Rossi.

Folha

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